Um importante conceito da sociologia – papel social – merece ser criticado.
O conceito parece trazer consigo uma velha teoria da vida como teatro, da vida como palco. Nós seríamos “atores sociais” representando papéis nos mais diversos palcos da vida: trabalho, amor, família, clube etc. Talvez possamos ainda supor um papel que desempenharíamos sozinhos, por assim dizer, na coxia, papéis para os quais apenas o espelho – se tanto! – seria espectador.
O que há de equivocado neste conceito?
Em primeiro lugar, a metáfora parece inadequada. Não podemos, como os atores, mudar de vida com tanta facilidade como supõe a força metafórica do conceito. Nossa vida é regulada por dispositivos políticos, econômicos, ideológicos etc. que servem exatamente para que continuemos “atuando” os mesmos “papéis” sempre. Então, não seria melhor nomear este tipo de coisa com um nome mais adequado, menos falso? Que tal “propensões sociais”?
Em segundo lugar, o conceito “papel social” e seu correlatos dão a falsa impressão de uma autonomia subjetiva. Novamente, tem-se a impressão de que somos atores num teatro e que podemos sair do palco quando bem entendermos. Os defensores da autonomia vão dizer: mas todos podemos mudar de vida, não? Ora, claro! Mas, quais são as possibilidades sociais, psíquicas, econômicas, políticas etc., disto acontecer? Onde não é possível mudar? É possível abandonar a linguagem? Até que ponto não há também uma série de “mudanças que nada mudam”?
Um terceiro ponto: o conceito de papel social também parece colocar em xeque ou relativizar demais a noção de responsabilidade. Peca, portanto, nos dois lados: ora por aumentar demais a autonomia, ora por desprezá-la. Afinal, se somos atores, quem escreveu o script? Não fomos nós, claro! Pois, apenas representamos… Não somos. Então, como fica a responsabilidade?
O quarto ponto: pense no papel do morto. Podemos representá-lo? Talvez, neste ponto específico, os existencialistas estejam certos. Não podemos representar nossa existência, pois não podemos representar nossa morte. Se somos para-a-morte é porque não podemos vivê-la. Está aí um “papel social”, o de morto, que não podemos representar sem, automaticamente, não representar mais nenhum. Que algum cadáver represente para nós não é coisa que ele faça. Isso, lidar com a morte, é problema dos vivos apenas.
É um conceito sedutor… mas que merece ser repensado.
[Parece que O Mercador de Veneza, de Shakespeare, começa justamente com a frase: “life is but a stage”… Fica bem… numa peça de teatro!]