O conto “Composição I”, de Sérgio Sant’Anna, pode ser lido como uma reflexão sobre a lei. Mais especificamente: algumas formas assumidas pela lei: o arbitrário, o tabu, a dominação.
Há várias menções às relações de poder no conto:
(1) a mãe e a empregada. A mãe ganhou de presente uma campainha para chamar a empregada. Esta acha que a campainha serve para chamar cachorro e sente raiva por isso.
(2) o empregado e o patrão: o pai reclama do emprego. Diz que se não houver aumento, sairá do emprego. Ele, em casa, é o chefe. Mas, fora, é submisso.
(3) o pai com a mulher: “Papai olha com raiva para mamãe, mas dessa vez ele não diz que ela o está sempre interrompendo e é burra e não entende nada das coisas que ele fala.” (p. 80). A brutalidade excessiva do pai também aparece com a filha.
(4) o pai com os filhos: o sorriso que não é permitido à mesa. A cena terrível das batatas espremidas na mão da filha.
(5) do pai com o Estado: “os militares é que deviam tomar o poder” (p. 79).
O conto é excelente, pois deixa ver como as relações de poder são complexas e atravessadas por várias formas de lei. A do trabalho, a da dominação masculina, a da ordem familiar…
Marcada pelo itálico, uma outra relação se revela: a do incesto entre os irmãos. No escuro, após o evento do jantar, os irmãos se encontram rompendo o tabu do incesto. Seria uma forma de lutar contra o arbitrário? De mostrar para o pai que nem toda lei deve ser seguida? Que à noite há exceção às regras violentas? Mostrar que ele não controla tudo? (Lembremos, entretanto, que o narrador, o irmão, teme é o olhar da mãe… é ela quem deve controlar a sexualidade dos filhos, não?)
Uma interpretação suplementar da cena do incesto: os “olhos fechados” da irmã podem ser o sinal de prazer, mas também, mais uma vez, sinal de obediência. Seria, então, o incesto mais uma forma de se submeter ao poder masculino? Mas, desta vez, amorosamente instituído?
O conto pode ser visto, então, como uma alegoria sobre os frágeis limites entre o tabu e o arbitrário, a regra e o seu descumprimento.
O conto pode ser lido em:
Sant’Anna, Sérgio. Contos e novelas reunidos. São Paulo: Cia. das Letras, 1997, pp. 78-87.
(Originalmente o conto pertence ao livro Notas de Manfredo Rangel, repórter (a respeito de Kramer).
Recomendo também um bom ensaio sobre o livro no qual está o conto: