O romance O Tigre Branco, de Aravind Adiga (Trad. Maria Helena Rouanet; RJ: Nova Fronteira, 2008), é bem interessante pra pensarmos a questão do liberalismo e de uma das suas mais curiosas contra-condutas: o empreendedorismo radical.
Vamos por partes. O romance conta a história de Balram Halwai, sujeito muito pobre que se torna motorista. Balram é o narrador dessa história. Ele a conta na carta que está enviando ao Sr. Wen Jiabao, o primeiro-ministro da China. Balram quer contar sua história de sucesso, de empreendedorismo. E não deve ser por acaso que o sujeito a quem ele se endereça também seja representante de um Estado “empreendedor” no mesmo sentido que Balram deseja ser.
Muito aos poucos Balram vai criticando sua posição social. Aos poucos, ele vai tendo consciência das castas, da desigualdade, da corrupção generalizada. Também critica os hábitos religiosos e o número incalculável de deuses da Índia. A búfula d’água é uma personagem à parte. Os “terroristas” Naxal também são citados (p. 74, p.ex.): aqui um outro tipo de contra-conduta, o marxismo revolucionário, é apenas citado, mas aparece algumas vezes no romance.
O romance tem tiradas boas como essa: “Como eunucos conversando sobre o Kama Sutra, os eleitores ficavam falando das eleições em Laxmangarh” (85). A crítica à política/corrupção da Índia é permanente, do início ao fim. Boa parte do empreendedorismo de Balram é atravessado pela corrupção do Estado. Esse me parece um ponto importante.
A literatura aparece de uma forma bem interessante. Os motoristas liam Assassinato Semanal, romances baratos que traziam na capa “a figura de uma mulher tremendo de medo diante do seu futuro assassino”. O próprio Balran interpreta: “É claro que um bilhão de empregados alimentam secretamente, a fantasia de estrangular o patrão – e é por isso que o governo da Índia publica essa revista e a vende pelas ruas pelo preço módico de quatro rupias e meia, para que até os pobres possam comprá-la. Veja bem: nessa revista, o assassino é tão perturbado mentalmente e tão pervertido sexualmente que nenhum leitor ia querer ser como ele, e, ainda por cima, no final, ele é sempre capturado por algum policial honesto e trabalhador (ha!), ou então fica louco e se enforca com um lençol, depois de escrever uma carta sentimental para a mãe ou a primeira professora. Há ainda a possibilidade de o sujeito ser perseguido, espancado, violentado e amarrado pelo irmão da mulher que ele matou. Portanto, se encontrar o seu motorista entretido na leitura da Assassinato Semanal, relaxe. O senhor não corre perigo algum. Muito pelo contrário.
Quando o seu motorista começar a ler sobre Gandhi e Buda, aí, sim, Mr. Jiabao, é hora de se mijar nas calças. (p. 107)
Ora, a carta de Balran é um pouco como esses romances baratos. Ele mata o patrão, mas… o final é bem diferente. Outra passagem que retoma esse poder da literatura está na p. 209, na qual, ele cita “os quatro maiores desses sábios poetas” que contam os segredos da guerra entre pobres e ricos e que permitem que aqueles tenham um desfecho melhor. São eles: Rumi, Iqbal, Mirz Ghalib “e um outro sujeito cujo nome me disseram, mas esqueci”.
A metáfora animal aparece diversas vezes no romance. Numa delas, Balran diz que “estamos presos na Gaiola dos Galos, exatamente como aqueles pobres coitdados lá no mercado” (p. 146). Também a búfala d’água, as baratas do quarto e, claro, o tigre branco, aquele que nasce apenas um a cada geração. O encontro com o tigre (225-7) é o auge da transformação de Balran: “Foi então que, do meio da lama, surgiram umas garras, penetraram na minha carne e me puxaram para dentro da terra escura.” Seu desmaio é também um despertar.
E o que é o empreendedorismo radical? Bem, Foucault vai apontar no curso Segurança, Território, População, uma noção ainda muito pouco explorada chamada contra conduta. E o que é isso? É uma conduta que leva ao extremo uma certa lógica do poder de tal forma a colocar em risco a própria estrutura do poder que a engendrou. Um exemplo: no cristianismo aparecem os místicos. Ora, os místicos aos poucos vão se afastando da comunidade, do poder da igreja… até que finalmente eles rompem o laço com essa estrutura de poder (no caso o poder pastoral) ao qual eles se submetiam. Vejam bem: não se trata, de forma alguma aqui, de uma recusa direta do poder. Trata-se de uma exacerbação dessa estrutura mesma, um excesso.
Bem, no final do curso, Foucault aponta algumas contra-condutas no liberalismo: a revolução da sociedade civil e a escatologia revolucionária. É importante somar uma terceira possibilidade – apontada no Nascimento da Biopolítica – que é o empreendedorismo. Do que se trata? O sistema político no diz: sejam empreendedores, não aceitem as amarras do mercado, das condições sociais. Inventem, inovem, façam acontecer. Bem, uma forma de colocar isso em marcha, no limite, é empreender de forma radical, nesse caso, se valendo das brechas da lei ou mesmo diretamente do crime. A regra geral (empreender) vale mais que qualquer outra regra. Ela é legitimada, por assim dizer, pelo jogo mais amplo do capitalismo.
No romance O Livro dos Mandarins (comentei num post mais antigo) isso também acontece: o sujeito vai abrir um bordel com prostitutas sudanesas sem clitóris. Ora, uma moça quer entrar para o bordel. O que é proposto a ela? A ablação de seu clitóris. Pronto: simples. Quer empreender? Não importa o preço, não importam as condições. Tudo é possível, onde a regra final é o lucro, é a criatividade do ganho.
Aqui no Tigre Branco, temos a mesma coisa: o assassinato, o roubo, a corrupção. Mas, tudo isso para manter a regra do jogo. Em nenhum momento temos Balran agindo contra a própria estrutura do modo de produção capitalista. Em nenhum momento, ele quer sair do jogo. Ao contrário: ele se torna um empresário e segue as regras. Aliás, ele é até mais ético que muitos empresários que conheceu (na cena do ressarcimento do sujeito atropelado por um de seus motoristas isso fica claro).
Enfim, é esse o ponto a ser melhor explorado, dissecado. Trata-se de um romance muito bom. Bem fácil de ler, um tanto didático, sem explorar muito o campo literário, mas instigante. Vale a pena.
Em tempo, pra quem curte ouvir o autor falando do seu trabalho, essa entrevista com Adiga é excelente:
http://bookshop.blackwell.co.uk/extracts/white_tiger.mp3