No livro O Flerte, de Adam Phillips, há um texto chamado “Contigência para principiantes”. Há três pontos do texto que quero retomar.
(1) “O lapso freudiano – cujo próprio nome é uma revelação involuntária – é o acidente que está fadado a acontecer.” (Phillips, 1998: 39).
O lapso, o ato falho, o sonho e até mesmo o sintoma: as formações do inconsciente usam os “acidentes” da vida cotidiana para a construção de um sentido. Obviamente, esse sentido não é ele mesmo contingente. O sentido dos sintomas, aliás, é transformar o acidente… em sentido. De certa forma, o funcionamento do aparelho psíquico pode ser descrito como fabricação de sentido.
(2) Phillips faz uma citação do romance Foe, de J. M. Coetzee, a qual vale a pena reproduzir:
Em um universo de acaso há um melhor e um pior? Rendemo-nos ao abraço de um estranho ou entregamo-nos às ondas, mediante um pestanejar, nossa vigilância se relaxa; estamos adormecidos, e quando despertamos perdemos o rumo de nossas vidas. O que são tais pestanejares, contra os quais a única defesa é uma eterna e desumana vigilância? Não poderiam ser as rachas e as fendas através das quais uma outra voz, outras vozes, falam em nossas vidas? Com que direito tapamos os ouvidos a elas?
Essas outras vozes – brechas e fendas da e para a alteridade – são a possibilidade de um outro rumo: para o melhor e/ou para o pior. O amor é um momento de distração, um pestanejar contra a vigilância do desejo de sermos os mesmos. O ponto inicial da justiça – lembrem-se que Coetzee escreve sobre um dos mais terríveis regimes autoritários que o Ocidente pôs em prática – é abrir espaço para essas outras vozes. Não há democracia sem abertura para o acaso, sem acolhimento da diferença: para o melhor e para o pior. Não temos, porém, na democracia, o direito de “tapar os ouvidos”. Esse é o início inexorável da injustiça.
(3) Phillips começa seu texto com uma epígrafe na qual cita um trecho importante do artigo de Freud sobre Leonardo: “Se o acaso é considerado indigno de determinar nosso destino, trata-se simplesmente de uma recaída na visão religiosa do universo, que o próprio Leonardo estava em via de superar quando escreveu que o Sol não se move.”
O acaso não é digno de determinar nosso destino. O ponto aqui é o esforço incessante e duplo: (a) acolher o acaso e a contingência como determinante radical da existência; (b) dar sentido e modificar, na medida do possível, o non-sense radical da vida. O acaso está no centro da teoria psicanalítica: o conceito de pulsão serve para dizer, em primeiro lugar, que não somos controlados pelo instinto – em grande medida a versão laica-cientificista da visão religiosa do universo. A pulsão é afirmação de que nosso destino é aberto às contingências: nosso desejo depende de nossa história e não de um script pré-determinado pela biologia ou pela religião. Isso nos abre de maneira radical – e apenas a nós, humanos – ao campo moral, no qual a justiça e a injustiça são valores que valem a pena discutir. A religião é um conversation stopper, nos dizeres de Richard Rorty, e, nesse sentido, anti-democrática por excelência. A psicanálise, ao contrário, se estabelece sobre o ideal – e isso é importante ser frisado: é um ideal – de uma conversa livre, cuja direção não pode ser pré-determinada por nenhum interesse prévio. A livre associação, idealmente, é quando conseguimos estar mais preparados para a contingência… e para a democracia (o regime de governo que acolhe sistematicamente o “marginal”, a “minoria”, o “reprimido”).