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Monogamia

27/04/12

“Nem todo mundo acredita na monogamia, mas todos vivem como se acreditassem. Todos têm consciência de estar mentindo ou querendo dizer a verdade quando estão em jogo a verdade e a lealdade ou a fidelidade. Todos se consideram a si mesmos traidores ou traídos. Todos sentem ciúmes ou se sentem culpado, e sofrem a angústia de suas preferências. E os poucos felizardos que aparentemente sofrem de ciúmes sexuais estão sempre ou se mostrando intrigado com isso ou se vangloriando do privilégio. Ninguém jamais foi excluído da sensação de ter sido deixado de fora. E todos vivem com a obsessão daquilo que foram excluídos. Noutras palavras: acreditar na monogamia não diferente de acreditar em Deus.” (Adam Phillips. Monogamia. Trad. Carlos Sussekind. São Paulo: Cia. Das Letras, 1997: 1, ênfase minha).

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De um ponto de vista que se pode chamar “senso-comum-darwinista” podemos elaborar no mínimo duas ideias centrais em torno da monogamia. A primeira diz respeito à espécie: é óbvio que a monogamia é contraproducente para animais como nós. Precisamos do máximo de variação genética para que tenhamos mais chance de transmitir algo de nossa própria carga genética. Isso vale para os homens e para as mulheres: quanto mais parceiros tivermos ao longo da vida, maior a variação genética, mais protegidos estarão nossos bebês. Poderíamos perder um ou dois para a gripe, mas não todos. Poligamia, desse ponto de vista, é um requisito à autoconservação do maior número possível de bebês diante das contingências ambientais.

Esse mesmo senso-comum-darwinista, agora pensando no indivíduo, pode nos informar com segurança: nosso esforço em direção à monogamia se dá devido às marcas deixadas por nosso estado pré-maturo. Nossa intensa ligação com a mãe ou com alguns poucos adultos que cuidaram – também como questão de vida ou morte – de nós, acaba por nos fazer erigir um modelo amoroso que tentamos repetir o resto da vida. Penso em fenômenos concretos aqui: redes neuronais que se formam nesse período, estabelecimento de padrões comportamentais etc.

Duas forças em sentidos opostos, portanto, a partir desse senso-comum-darwinista. Mesmo que o primeiro pareça ser bem mais forte, estaremos sempre às voltas com o segundo. Queremos diversidade, mas com as garantias da segurança.

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De um ponto de vista psicanalítico, acredito que as fantasias que sustentam a monogamia giram em torno da situação originária. Situação na qual o bebê depende de forma radical do outro – geralmente a mãe. Estabelece-se esse padrão amoroso: o outro deve me amar exclusivamente, pois se não o fizer corro o risco de morrer.

O ciúme talvez seja, inicialmente, uma forma de protesto desse tipo: “Como você ousa desejar outrem sabendo que isso me condenaria à morte?”. Há algo de narcísico, de ameaça ao narcisismo, nos ciúmes. Algo secundário que poderia se enunciar assim: “o que o outro tem que eu não tenho?” ou “o que falta em mim para você procurar no outro?”. A relação com a inveja – como bem explica Melanie Klein – parece inevitável aqui. O eu do ciumento – o mártir da monogamia – é profundamente afetado pela inveja. Ele está sempre desconfiado de que o terceiro irá tomar o seu amor, pois ele sempre suspeita de que não tem o suficiente para oferecer.

Mas quem, nas origens, tinha o suficiente a oferecer para a mãe? Nesse sentido, quase delirante, de que o supostamente teríamos faria com que ela fosse exclusivamente nossa, que a fizesse não desgrudar seu desejo de nós? Ter todo esse “charme” também não nos condenaria a uma prisão eterna no desejo materno? E se a monogamia fosse esse desejo, de ser possuído – muito mais que possuir – pela mãe para sempre? De, para retomar a citação de Phillips acima, nunca ter sido excluído?

Essa ligação do narcisismo e o ciúme não pode começar do lado da mãe também? Não apenas o bebê e sua onipotência de não aceitar ser rejeitado, mas também, talvez alimentando e implantando essa onipotência, a identificação da mãe com seu bebê. No sentido indicado por Nietzsche:

Uma espécie de ciúme. – É fácil as mães sentirem ciúme dos amigos de seus filhos, quando eles têm sucesso extraordinário. Habitualmente a mãe ama, em seu filho, mais a si mesma do que ao próprio filho.” (Nietzsche, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 385).

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Para além do senso-comum-darwinista: a impressão que tenho é que a biologia é convocada muito mais pelos poligâmicos. Na mesma proporção que a religião é álibi inquestionável da monogamia. Cabe pensar no caráter fantasístico dessas teorias. A suspeita psicanalítica – também de Nietzsche e Foucault – com relação às teorias que tendem ao universal, ao absoluto e a uma recusa do contingencial parece, no entanto, ameaçar muito mais a monogamia do que as relações amorosas sem exigência de exclusividade.

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Por que tendemos a colocar D. Juan ou Carmen do lado da perversão e não “Amélia” (a dona de casa, fiel à casa, ao marido e aos filhos) ou Charles (o marido apaixonado de Mme. Bovary)? Os quatro, cada um a sua maneira, não estão escolhendo como desejar de forma singular? Ser fiel é tão singular quanto não desejar pactos monogâmicos. A diferença está, parece, no que endereçamos ao outro. A perversão residiria na proporção da diferença entre (a) o pacto que dissemos estar cumprindo com o outro e (b) o efetivo cumprimento desse pacto anunciado e assinado com o outro? Mas quantos pactos podemos estabelecer com o outro, quantos tem a marca da fidelidade? Por que temos a impressão de que tão logo descumprimos um desses, estaremos descumprindo todos? A fidelidade, ela mesma, exige fidelidade e exclusividade a ela mesma. Essa lógica do “tudo ou nada” erigida pela monogamia, uma lei tão severa, um pacto tão avesso ao perdão e ao matiz, não poderia estar também do lado da perversão?

As mútuas agressões e vilipêndios entre monogâmicos e poligâmicos são instrutivas nesse respeito. As acusações, de um lado e de outro, tendem a ver o outro como “deficitário” de algo. Os primeiros veem os segundos como “fóbicos ao amor”. No sentido inverso, os poligâmicos acusam os monogâmicos de “fóbicos ao desejo”.

O que nos ensinam esses personagens da literatura, esses estereótipos? Charles é tedioso e tolo. E D. Quixote atrás de Dulcinéia? Romeu e Julieta? Já as adúlteras… Emma Bovary ou Anna Karenina não me parecem exatamente em busca de um amor livre da mesma forma que Carmen. As duas ainda querem uma monogamia com “mais desejo”… Carmen e D. Juan temem o casamento como verdadeiro assassinato do desejo…

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E todos vivem com a obsessão daquilo que foram excluídos: uma forma de se lidar com o trauma é repetindo-o. Na posição passiva ou ativa. O poligâmico pode pensar assim: “Não fui o excluído. Eu excluo. Eu seduzo e tão logo vejo que o outro me ama, dispenso-o. Agora sou eu quem está na posição ativa.”

Pensemos ainda no que há de repetição da passividade nessa cena de exclusão quando alguns de nós reiteradamente provocamos nossas rupturas amorosas. Quando realmente, o outro rompe o pacto amoroso porque efetivamente o estávamos colocando na posição materna. O sujeito vai sofrer seu abandono repetidas vezes.

O viés moralista da teoria psicanalítica aqui tem que ser alvo de suspeita também. Pessoas que querem ter relações amorosas mais “liquidas” ou mais numerosas ao mesmo tempo não são necessariamente compulsivas. Aliás, a configuração monogâmica tem tudo para ser compulsiva, não?

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Não há biologia e nem moral universal que sustente nossa aphrodisia. Nossas práticas amorosas vão ter que ser pensadas no caso a caso. Essa reflexão começa sempre com a suspeita de que não somos totalmente fieis ao nosso próprio desejo, afinal, ele não é propriamente nosso…

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Casamento estável – Um casamento no qual cada um quer alcançar um objetivo individual através do outro se conserva bem; por exemplo, quando a mulher quer se tornar famosa através do homem, e o homem quer se tornar amado através da mulher.” (Nietzsche, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 399).

A monogamia, percebe-se, pode ser cada vez mais estável quanto mais mono for. Na mesma direção caminha o conselho do filósofo:

A unidade de lugar e o drama. – Se os cônjuges não morassem juntos, os bons casamentos seriam mais comuns.” (Nietzsche, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 393).

Quanto mais bem separados estiverem, maiores as chances de um casal estar junto. Talvez por que essa separação seja também uma forma de não depositar nossas fantasias no outro, nossas expectativas. Outra face do narcisismo no amor, portanto: quanto mais vivemos através do outro, menor a chance de viver bem com o outro.

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No texto “A fidelidade feminina é imperdoável”, Paulo César de Carvalho Ribeiro analisa o conto “O homem que precisava ter ciúmes”, de Menotti del Picchia.

Não se pode desprezar, nos dizem o conto e a análise, um evento psíquico notável: muitos sujeitos buscam ter ciúmes. Mais ou menos consciente, o ciúme é buscado, intensificado. Imaginar o outro com um terceiro é muitas vezes uma fantasia profundamente excitante. Claro, na maior parte das vezes, essa excitação vem misturada com forte angústia.

Freud já nos falou disso no caso Schreber: eu, um homem, identificado com minha mulher, quero sentir o que ela sente ao ser penetrada. Por não aceitar essa identificação, projeto nela meu desejo de ser penetrado e tenho ciúmes. A identificação com a mulher, com o feminino, com a passividade é uma fonte importante nos ciúmes masculinos.

A princípio, não me parece simplesmente uma questão de inverter vetores aqui para se compreender os ciúmes na mulher. De qualquer forma, eis uma lógica possível: eu, uma mulher, identificada com um homem, quero penetrar ativamente uma mulher. Como também me angustio diante dessa cena, projeto no meu homem o desejo que é meu.

De qualquer forma, é fundamental deixar sobre a mesa esse fato: a monogamia muitas vezes se sustenta através da fantasia da traição. Não apenas fantasia: é possível imaginar relações estáveis exatamente por não serem monogâmicas. O objeto produzindo excitação justamente por permitir essa projeção de nossos desejos inconscientes ligados às identificações de gênero. Devemos suspeitar da angústia gerada por essa projeção, pois ela é também fonte de excitação.

Mais uma vez, Nietzsche ajuda aqui: “Amar e ter. – Em geral, as mulheres amam um homem de valor como se o quisessem ter apenas para si. Bem gostariam de trancá-lo a sete chaves, se isto não contrariasse a sua vaidade: pois esta requer que a importância dele seja evidente também para os outros.” (Nietzsche, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 401).

Existe uma cota considerável na manutenção da monogamia a ser atribuída ao sujeito que incita o terceiro a amar seu objeto de amor. Assim como os religiosos tentam convencer os outros que o seu deus é melhor que o dos outros.

(A análise e o conto de del Pichia está no livro Psicanálise e Literatura: seis contos da era de Freud. Que em breve será reedito pela KBR. Coloco o link aqui em breve!)

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De um ponto de vista mais sociológico, pensem no papel que a prostituição exerce para a manutenção da monogamia. Nietzsche sugere que o casamento requer um “auxílio natural, o do concubinato“. O argumento é obviamente machista e biologizante. O que quero fazer notar é uma certa lógica: “Todas as instituições humanas, como o casamento, permitem apenas um grau moderado de idealização prática, de outro modo remédios grosseiros se fazem necessários.” (Nietzsche, F. Humano, Demasiado Humano: um livro para espíritos livres. Trad. Paulo César de Souza. São Paulo: Cia. das Letras, 424).

Uma passagem de Gilberto Freyre, que não canso de citar, também explicita a mesma lógica:

“Foram os corpos das negras – às vezes meninas de dez anos – que constituíram, na arquitetura moral do patriarcalismo brasileiro, o bloco formidável que defendeu dos ataques e afoitezas dos don-juans a virtude das senhoras brancas. (…) a virtude da senhora branca apóia-se em grande parte na prostituição da escrava negra.” (Freyre, Gilberto (2001/1933). Casa-grande & senzala: introdução à história da sociedade patriarcal no Brasil I. 45.ed. São Paulo: Record, 501).

Que essa “outra sexualidade”, o “remédio grosseiro”, possa estar mais na fantasia ou mais no real, é um ponto. Mas, o que interessa aqui é mostrar que a monogamia como instituição social é também garantida por uma outra sexualidade, mantida por assim dizer “no inconsciente”, à margem, do social.