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Não convém ser outro

04/05/12

Das muitas micro estórias que há no Grande Sertão: Veredas, essa é uma das que eu mais gosto. (minha predileta ainda continua a de Maria Mutema). É ao mesmo tempo tão inocente e sádica essa estorinha. E a conclusão, à la koan chinês ou chiste freudiano, deixa a coisa com ar de parábola…
Seo Ornelas, nessa ocasião, tinha amizade com o delegado dr. Hilário, rapaz instruído social, de muita civilidade, mas variado em sabedoria de inventiva, e capaz duma conversação tão singela, que era uma simpatia com ele se tratar. – “Me ensinou um
meio-mil de coisas… A coragem dele era muito gentil e preguiçosa… Sempre só depois do final acontecido era que a gente reconhecia como ele tinha sido homem no acontecer…” Ao que, numa tarde, seo Ornelas – segundo seu contar – proseava nas entradas da cidade, em roda com o dr. Hilário mais outros dois ou três senhores, e o soldado ordenança, que à paisana estava. De repente, veio vindo um homem, viajor. Um capiau a pé, sem assinalamento nenhum, e que tinha um pau comprido num ombro: com um saco quase vazio pendurado da ponta do pau. – “… Semelhasse que esse homem devia de estar chegando da Queimada Grande, ou da Sambaíba. Nele não se via fama de crime nem vontade de proezas. Sendo que mesmo a miseriazinha dele era trivial no bem-composta…” Seo Ornelas departia pouco em descrições: – “…Aí, pois, apareceu aquele homenzém, com o saco mal-cheio estabeleci do na ponta do pau, do ombro, e se aproximou para os da roda, suplicou informação: – O qual é que é, aqui, mó que pergunte, por osséquio, o senhor doutor delegado?-ele extorquiu. Mas, antes que um outro desse resposta, o dr. Hilário mesmo indicou um Aduarte Antoniano, que estava lá – o sujeito mau, agarrado na ganância e falado de
ser muito traiçoeiro. – O doutor é este, amigo… – o dr. Hilário, para se rir, falsificou. Apre, ei – e nisso já o homem, com insensata rapidez, desempecilhou o pau do saco, e desceu o dito na cabeça do Aduarte Antoniano – que nem fizesse questão de aleijar ou matar… A trapalhada: o homenzinho logo sojigado preso, e o Aduarte Antoniano socorrido, com o melor e sangue num quebrado na cabeça, mas sem a gravidade maior. Ante o que, o dr. Hilário, apreciador dos exemplos, só me disse: – Pouco se vive, e muito se vê… Reperguntei qual era o mote. – Um outro pode ser a gente; mas a gente não pode ser um outro, nem convém… – o dr. Hilário completou. Acho que esta foi uma das passagens mais instrutivas e divertidas que em até hoje eu presenciei…” (GSV, 657, negrito meu)
Minha interpretação: se vc está no lugar do poder, nunca se identifique, nunca se explicite, dirija o olhar do outro para uma outra cena, um outro lugar. Faça-o procurar a chave que perdeu do outro lado da rua, debaixo do poste, porque ali está claro… O dr. “Hilário” ensina bem: para se defender, não é o caso de se passar por outro, melhor fazer o outro ocupar nosso lugar.