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Sobre a fofoca

03/07/12

Quando, muito tempo depois, ele soube que Albertina morava então comigo, compreendendo que eu a escondera de toda a gente, declarou que via afinal o motivo por que, naquela época da minha vida, eu não queria nunca sair de casa. Enganou-se. Era aliás perfeitamente desculpável, pois a própria realidade, não obstante necessária, não é completamente previsível. Os que vêm a conhecer algum detalhe exato da vida alheia tiram logo consequências que não o são, e veem no fato recém-descoberto a explicação de coisas que precisamente não têm nenhuma relação com ele.” (Proust, A prisioneira, 1981, p. 1).

Começo essa reflexão psicanalítica sobre a fofoca com essa citação de Proust. A partir dela, uma hipótese fundamental: a fofoca nasce da fantasia oriunda da onipotência infantil de conhecer – e dar a conhecer – a vida alheia. Saber da vida dos outros, invadir a privacidade: esse é um dos desejos que sustentam a fofoca.

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Dobra da projeção, paranoia projetada: o fofoqueiro imagina saber o que se passa na vida do outro (assim como o paranoico imagina que os outros sabem o que vai dentro de si).

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“Ao que às ocultas calunia ao seu próximo, a este destruirei” (Sl., 101: 5). A tradição judaica está repleta de advertências contra a fofoca. A punição é radical, como mostra esse versículo. Isso porque a fofoca tem um efeito altamente desagregador no laço social – algo a ser protegido também de forma radical dentro dessa tradição.

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Fazendo pesquisa para imagens no Google para “fofoca” aparecem, em sua maioria, mulheres fofocando. Antes de qualquer conclusão sobre o machismo, uma hipótese: a fofoca é também um dizer às ocultas, dizer do oprimido, a fala que não pode ser pública. Ali onde poderíamos ver a incontinência das mulheres, podemos ver, antes, um modo de resistência. Diante da milenar proibição à palavra pública, sobra o recurso à palavra escondida.

Claro, esse recurso está longe de ser político, de ter essa face de resistência sempre explícita. Nos romances, nos contos de fada, no dia a dia, o motivo da fofoca, de forma geral, é sempre uma ninharia, sempre um nada: a cor do vestido, o cabelo, um modo de se comportar. Pequenos detalhes vis elevados à máxima importância.

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Há a fofoca sádica, aquela que visa denegrir, “aumenta um ponto” no conto inventado para destruir o outro. Impossível não trazer a inveja como parceira da fofoca. A inveja, tal como Melanie Klein a conceituou: o ódio dirigido ao outro, que visa envenená-lo de todas as formas, destruí-lo. A fofoca é uma arma de destruição do outro dentro do laço social. O fofoqueiro produz uma imagem do outro que visa tornar impossível qualquer redescrição, qualquer nova percepção que possamos ter de seu alvo.

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Pensem na alienação parental tal como vista nos tribunais como um modelo da fofoca. Ali, sua fonte edípica explícita. A fofoca só pode se estabelecer nesse triângulo: um dos vértices denigre outro para um terceiro. Essa estrutura triangular, sabemos, é a base do Édipo. Estaria aí também uma das fontes do desejo de fofocar? A alegria de um dos pais em denegrir o outro para o bebê de tal forma a ter somente para si o amor do filho? O fofoqueiro não quer apenas denegrir o outro, quer construir para si uma imagem idealizada, sem falhas.

A alienação pensada enquanto relato metonímico (uma pequena ação do outro tomada como verdade plena da identidade do outro) ou a pura invenção mentirosa do que o outro faz e é. O objetivo sádico desse tipo de discurso é mais evidente: trata-se de tirar o filho do outro, golpe narcísico sem precedentes, arrancar do outro aquilo que, na maioria dos casos, ele (a) tem de mais valioso.

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Em que medida uma sessão de análise pode se aproximar da fofoca? Qual é a posição do analista que desfaz o triângulo da fofoca? Por que “falar dos outros” em análise deve ser, de certa forma, neutralizado pelo analista?

“Quando João fala de Pedro fala mais de João que de Pedro mesmo”: lição básica de suspeita. O que João quer falar de si mesmo quando fala de Pedro? Apontar o caráter projetivo de nossa percepção é um recurso contra a fofoca.

E quais as diferenças entre falar “mal” do outro e julgar o outro, reconhecer, em análise, os posicionamentos morais de cada objeto de amor que nos circunda? Matizar o julgamento moral e seu endereçamento ao terceiro: é esse exercício que a fofoca coloca em prática na análise. Ou seja, não se trata de proibir nossas conversas sobre terceiros ausentes. É fundamental haver espaço de privacidade no qual possamos conversar sobre um terceiro com alguém de confiança. Julgamentos morais complexos quase nunca se constroem em conversas solitárias. A questão está em tornar essa conversa como condição para incremento de conversas com esse terceiro que foi alvo de investigação ou crítica.

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No vídeo acima, o poeta Ricardo Aleixo, lê sua “Lira Maldizente”. Pensem na fofoca agora dentro de um campo profissional. “Em lugar de críticas, obituário”: no caso da academia, as “críticas” muitas vezes são feitas nos corredores, nos gabinetes, à boca pequena, por assim dizer… Na verdade, evitam o espaço público: seja para a manutenção de uma cordialidade conivente, seja para evitar o debate aberto. A fofoca do homo academicus (cf. Bourdieu) está a serviço do que podemos chamar “narcisismo esotérico”: o sujeito para defender sua teoria denigre as outras, imagina que sua teoria é apenas para os “iniciados”, aqueles que não aderem a ela são ignorantes e incapazes… Percebam que essa lógica pode ser usada para entender a fofoca como um todo: quanto mais frágil o espaço público de discussão, quanto menos ele é legitimado, quanto mais a crítica é confundida com ofensa, mais espaço temos para a fofoca, mais a crítica se transforma em maledicência.

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A fofoca é um tipo de fascismo com roupas de alerta generoso. A fofoca, por definição, retira do terceiro, alvo da fofoca, o direito à ampla defesa, à escuta e à ampliação de contexto para melhor compreensão dos fatos narrados. A fofoca é totalitária quando impõe uma versão dos fatos e quando retira do campo de julgamento moral o réu, o objeto, em questão.

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