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Espelho, espelho do outro…

02/02/14

1. Narcisismo como interrupção

A foto abaixo de Laura Williams é um ótimo ensejo para pensarmos em como nossa identidade é determinada pelo olhar do outro. Somos, a um só tempo, espelho e reflexo para / do outro. O narcisismo é uma operação psíquica que tenta, em alguma medida, se apropriar desse jogo infinito de espelhos. Eu reflexo do outro que se vê no eu do outro que se vê ainda replicado no olhar daquele outro eu… Esse mis-en-abîme das identificações deve ser interrompido. O narcisismo é o nome dessa interrupção. Um momento de dizer: eu sou eu. Sabemos, no entanto, os riscos do narcisismo. Não por acaso Freud optou por esse mito para descrever esse processo. O risco de perder-se em si mesmo é sempre iminente, na medida em que é convocado sempre esse recalcamento da nossa origem alteritária, especular. Riscos mortíferos do narcisismo. Invisibilizar o espelho: não mostrar nada de si para o outro, não ver nada do outro em si mesmo, não ver, enfim, algo de si no outro…

Qual face?

2. Narcisismo como jogo

Operação psíquica sempre incompleta, o narcisismo será sempre uma renovada ação psíquica de apropriação dos olhares que os outros nos lançam. Mais uma vez, o trabalho de Laura Williams nos mostra como esse jogo, de repente, passa de um “olhar que me constitui” para, ao mesmo tempo, um “o que você deseja ver em mim?”. Há aqui uma crítica ao realismo. Não vemos o outro “tal como ele é”. Ver é pulsional: vemos o outro a partir de nós mesmos. Desejamos ver nele algo que não necessariamente está lá, é ele mesmo… Muitas vezes, projetamos no outro algo que não suportamos em nós mesmos… Ou algo que gostaríamos de nos tornar, mas não conseguimos por alguma razão.

3. O seu olhar melhora o meu

A linda canção de Arnaldo Antunes merece ser lida nesse contexto como um antídoto contra esse narcisismo de morte. Reconhecer que “o seu olhar melhora o meu”, sem se esquecer que “seu olhar é seu”, é uma forma de assumir que somos sim constituídos pelo outro e que, desde o princípio, já participamos desse jogo nos oferecendo ao outro como espelho e, um pouco mais tarde, também como olhar.

O narrador do conto “O Espelho”, de João Guimarães Rosa, diz, após relatar sua fascinante experiência de desconstrução identitária:

Se sim, a “vida” consiste em experiência extrema e séria; sua técnica – ou pelo menos parte – exigindo – o consciente alijamento, o despojamento, de tudo o que obstrui o crescer da alma, o que a atulha e soterra? Depois, o “salto mortale” … – digo-o, do jeito, não porque os acrobatas italianos o aviventaram, mas por precisarem de toque e timbre novos as comuns expressões, amortecidas… E o julgamento-problema, podendo sobrevir com a simples pergunta: – “Você chegou a existir?”

São muitas as tarefas analíticas quanto ao narcisismo… 1) o que nos soterra o “crescer da alma”? Isto é, a quais identificações nos agarramos, medrosos desse “salto mortale” da mudança, de voltar, por um instante, a não-ser, para tentar construir um novo ser? 2) Como chegar a essa questão – “você chegou a existir?” – sem que ela nos paralise? Colocar o eu em xeque não pode significar, evidentemente, o fim do eu. Afinal, a análise não pode imprimir ainda mais morte num movimento já mortífero… Ao nos depararmos com as contingências libidinais e históricas de nossas identificações, estamos, a um só tempo, nos habilitando a nos livrar de traços identitários que não queremos, mas também e, principalmente, nos autorizando a construir novas identificações, novas representações de nós mesmos.

3. Borrar o olhar

A série “Dr. Heisenberg Magic Mirror of Uncertainty“, de Duane Michals, também me parece apontar para uma crítica ao espelho como lugar de certeza. Atrelar essa crítica ao princípio de Heisenberg é brilhante. Em termos leigos, tal princípio diz exatamente da imprecisão, da impossibilidade, de localizar elementos (um elétron, p.ex.) devido à inevitável influência daquele que mede sobre o que é medido. O mesmo se aplica à identidade: não há um olhar neutro o suficiente para “ver” a identidade pura, sem ser atravessada já por valores históricos e libidinais específicos.

http://www.ideafixa.com/as-historias-de-duane-michals/