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A loteria e o desejo

08/09/14

Loteria

Há melhor metáfora para se compreender a resistência à realização do desejo que o esquecimento de conferir o jogo de loteria? Sabemos de muitos casos nos quais jogos premiados nunca são requeridos. Esse esquecimento me parece revelador.

Penso no prazer que temos nos sonhos, devaneios e fantasias provenientes da suposta premiação. Boa parte do prazer do jogo, acredito, reside na criação de vidas possíveis, realizações de desejos até então impossíveis. Apostar é viver no futuro do pretérito. Viver a vida sonhando viver outra vida é um romance neurótico. A insatisfação com o presente é uma das faces manifestas do prazer de vidas impossíveis vividas na fantasia. O masoquismo proveniente desse confronto – entre a vida real e as fantasias – é a razão pela qual esquece-se de conferir o prêmio.

O prazer inconsciente de nunca se ter o que se deseja de fato encontra suas raízes na própria constituição subjetiva. Podemos ler o recalcamento originário, condição para a vida psíquica neurótica, como um tipo de renúncia radical à realização do desejo. Ou melhor, a sempre realizá-lo pela mediação da fantasia… nunca diretamente. Devemos ao recalcamento originário o prêmio paradoxal de ter nos livrado dos desejos infantis radicalmente mortíferos. A realização desses desejos implicaria na própria morte do eu (constituído, aliás, para fazer frente, resistir, a esses desejos…). Ao mesmo tempo, deixar de realizá-los é razão de permanente infortúnio, fonte dessas fantasias de outras vidas possíveis. A utopia freudiana do desejo, traduzida nessa metáfora da loteria, é reverter todo prêmio ganho em um novo jogo. (Aliás, Freud, no artigo sobre os princípios do funcionamento psíquico, fala sobre essa mítica utopia ensejada pela alucinação da satisfação proveniente das primeiras mamadas… Examino essa ideia no texto “críticas ao bebê solipsista de Freud”, presente nesse livro.)

Tarefa analítica: entender/elaborar o prazer paradoxal de que nem todo desejo deve ser realizado e que muitos outros podem. Ou ainda: autorizar-se ao prazer/excitação (Lust) com aquilo que se quer; resistir aos aspectos mais mortíferos do desejo. Para voltar à metáfora: um bom percurso analítico mostraria que é uma delícia fantasiar e dar lugar a desejos que não podemos / devemos realizar, ao mesmo tempo em que nos convidaria a ir buscar o prêmio para só então elaborar o devir realidade de algumas de nossas fantasias. Entender que amar não é uma aposta… Entender que a realidade é sempre um tanto inventada: como aquelas sombras que produzimos… Bom, mas essa já é uma outra metáfora.

coelho