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Whiplash

16/02/15

 

Whiplash

Whiplash é um filme interessante para pensarmos como nossas fantasias sadomasoquistas podem estar presentes na relação pedagógica.

A relação entre Andrew Neiman (o aluno) e Terrence Fletcher (o professor) é claramente sadomasoquista.

Algumas notas:

1) tais fantasias estão presentes inclusive no mais sublime, a música. É um erro supor q a arte é uma esfera dessexualizada da vida… Estórias como essa mostram sempre o contrário: o sexual perpassa, coloniza, invade, o que deveria ser, supostamente, uma área livre do pulsional…

2) ideais de perfeição estão à serviço do sadomasoquismo: Andrew quer ser o melhor, Fletcher quer explorar esse ideal… a disciplina obsessiva do músico é alimentada por dois senhores: o ideal de ser o melhor; a servidão ao ideal.

Andrew e Fletcher

3) o filme sugere uma interpretação edípica clássica. Andrew foi abandonado, ainda bebê, pela mãe. Seu pai parece ser extremamente cuidadoso e presente. Eles assistem filmes juntos e comem pipoca (Andrew não deixa de colocar passas na pipoca que divide com o pai, mesmo não gostando delas… ele “come as da beirada”…).

3.1) o pai de Andrew na cena da vingança de Fletcher é acolhedor e não conflitivo. Ao ver q o filho “falhou”, ele o acolhe e sugere ir pra casa. É justamente nessa cena q Andrew volta para o palco e enfrenta Fletcher.

3.2) Fletcher ocuparia o lugar de uma mãe a quem se quer, sob qualquer preço, agradar? Ele responderia de alguma forma às possíveis fantasias de Andrew sobre as razões do abandono da mãe? Conquistar Fletcher significa conquistar o amor da mãe que o abandonou?

4) Fletcher mente quanto ao suicídio de um dos seus alunos. Ele sabe perfeitamente o que significa exigir de um aluno ir “além dos seus limites”. Essa hybris que ele quer impor a todos é trágica e cínica: sadicamente ele vive uma passividade projetada e imposta ao outro. Fantasia justificada, de forma legítima, pelo sublime ato heroico, pelo bem da arte… Ser o melhor músico justifica todo abuso.

5) Existe uma via facilitadora na nossa cultura para as fantasias sadomasoquistas. Essa via são os muitos lugares heroicos que criamos. Numa conversa de almoço, Andrew discute com alguém que deseja ser um bom jogador de futebol. A discussão passa não apenas pela comparação de quem é o maior, melhor etc, mas também pelo ponto crucial dos herois da cultura: quem será lembrado após a morte? Mesmo após ter vivido mal, acabado drogado etc… Mesmo assim, quem será lembrado? Mais uma vez, parece que o par sadomasoquismo é indissociável: o sadismo imposto pelo ideal (o grande músico) sobrevive em grande medida às custas do masoquismo da vida real (vida solitária, de dor e sangue, de impossibilidade amorosa etc).

5.1) regras, objetivos, disciplina, motivação: a gente tá dentro do campo do ideal do eu, do q queremos ser, do q acreditamos q devemos ser… O ideal do eu é muito ambivalente: ora ele age como motivador, ora como carrasco… Não ser o q se deseja ser é, a um só tempo, aditivo e veneno… Nesse sentido, acho q disciplina é quando a gente entende q o ideal não precisa ser atingido de uma só vez… sacar melhor q o princípio da realidade é o princípio do prazer modificado… rs… ou seja: q a gente vai conquistando aos poucos… 

5.2) nossos modelos morais geralmente são pessoas motivadas, isto é, q tinham um motivo, uma razão para existir e fazer coisas. Saber do seu próprio desejo, ou pelo menos, acreditar q sabemos o q desejamos é uma conquista psíquica de grande alívio… motivar-se é dar uma razão para o q se quer fazer… quanto menos razões discrepantes e impossíveis, melhor! Imagino q na constituição do eu, inevitavelmente, há elementos enganosos, ligados aos desejos dos outros q tomamos como nossos… os imperativos da cultura, p.ex., são elementos desse tipo… daí, a importância de terapêuticas q nos ajudem a discernir melhor o q é meu e o q é do outro… quais são as minhas motivações e quais são aquelas q me foram impostas… 

5.3) O próprio processo de formação do eu é um tipo de disciplina, um tipo de docilização… nosso ideal cultural hoje casa-se perfeitamente aqui: self made man, fitness, entrepreneur… isso atende fácil às nossas fantasias sadomasoquistas… ora nos martirizamos, ora somos martirizados… Há q se estar atendo aos prazeres inconscientes q esses modelos propõem… seja na medida q os atendemos, seja qdo nos recusamos, à la Bartleby, a nos submeter a eles. Talvez, devamos abrir também outros espaços para a preguiça, a desordem, aos aspectos indisciplinados do desejo… A pergunta é: quando? com quem? como? Como abrir espaço para esse pulsional mais livre, sem perder as fundamentais conquistas da disciplina?

6) No diálogo com Nicole, a namorada, Andrew antecipa, de forma obsessiva, o fracasso do encontro amoroso: não terei tempo, vc irá exigir demais de mim, vc não irá compreender, só vou pensar em música e bateria, mesmo quando estiver com vc… etc. etc… É como se a relação com a música exigisse dele tudo, toda energia psíquica disponível, todo investimento amoroso. Como se a relação amorosa constituísse risco ao pacto simbiótico que ele deseja estabelecer com a música.

[Já falei um pouco da relação entre psicanálise e música nesse artigo: http://www.fabiobelo.com.br/wp-content/textos/musica.pdf]