Imaginem vocês: a polícia entra no prédio onde moramos e mata nossos filhos sob alegação que ali, de fato, havia um narcotraficante escondido… Que isso seja um fato… vocês aceitariam esse argumento? Vocês acham que tem justificativa esse tipo de ação como política pública regular? Isso faz algum sentido num Estado minimamente decente? Nós aceitaríamos isso se fosse num prédio de classe média? Por que aceitamos calados quando é na favela? O argumento-Poliníces não vale. Não pode valer.
Pode dar facada no sujeito no ponto de ônibus? Pode, uai. Ele se recusou a dar o celular.
Pode dar tiro na cabeça da criança da favela? Pode, uai. Ele era suspeito.
Pode bombardear um hospital, uma escola? Pode, uai. Os terroristas atiraram lá de dentro.
Pode prender as pessoas sem julgamento numa ilha? Pode, uai. Eles eram suspeitos muito suspeitos.
A destituição do direito à vida do outro em razão de uma ação qualquer do outro. Esse é o efeito radical do argumento-Polinices. Seja feito pelo assaltante, o traficante, o policial, o governador, o pai de família, o vizinho, o colega do trânsito, o torcedor do time adversário… qualquer um… qualquer um pode se achar Creonte e esvaziar toda responsabilidade sobre sua violência em nome de uma suposta má ação do outro (vestir a camisa errada, dirigir mal, ouvir música alta, fazer bagunça demais, ser traficante, ser assaltante, não entregar o celular na hora certa).
O argumento-Polinices: mas ele estava armado, era ladrão, agiu contra o Estado, por isso mesmo, ficam cancelados todos os seus direitos civis, toda possibilidade de defesa, toda humanidade.
O argumento-Polinices é o máximo da lógica cínica. O máximo. É ainda mais radical que o “Arbeit Macht Frei”, no portão de Auschwitz. E o é por ser dele uma dobra ideológica. Dobra que, a um só tempo, oculta e reforça os efeitos fascistas de uma ação que se pretende justa. O argumento-Polinices se dirige a todos, indistintamente. Não escolhe apenas um povo, uma religião. É qualquer um, por qualquer motivo. Do celular ao ataque por avião. É o mesmo argumento: você atacou, você não obedeceu, estão suspensos seus direitos civis. Mais que suspensos: há um cancelamento, uma destituição, uma dissolução, pois não há retorno, não há volta atrás, zero a posteriori, nenhuma condição de justiça, nem de memória, nem de reparação.
(Pensem nesse verdadeiro emblema do cinismo: a expressão “bala perdida”. É crível que uma bala que vise assassinar alguém tenha endereço certo? É para fazer crer em tal errância ou para instituir como natural um outro destino dessa bala? A cabeça do menino negro? É esse o destino natural, inevitável? E, por azar, mera contingência, desgarrada, a bala perdida mata alguém longe do campo de extermínio, seu habitat natural… Não é brilhante esse cinismo?)
“Estamos há mais de dez anos na faixa de 50 mil homicídios por ano”: a maioria absoluta desse “número” é de jovens, mais: jovens que são negros e pobres. Quais atos de memória e luta e luto? Nem esse direito, o direito de relembrar o horror, de tentar fazer o luto desse oxímoro, a barbárie civilizada, nem esse direito lhe concedemos. Os números constantes e abundantes não podem deixar dúvidas: é uma política pública. Não é apenas descaso ou incompetência. É uma ação deliberada. Junção da máquina pública, altamente civilizada, com os tentáculos do sadismo desobjetalizante mais radical: exterminar os desobedientes.
(50 mil por ano, há mais de dez anos… quantos precisaremos matar para tornar cabível uma comparação com regimes totalitários hiper visíveis na II Grande Guerra e depois nos regimes totalitários do século XX? Precisa passar de 5 milhões? Quantos? Se o número se mantém, se as mortes acontecem de fato, todos os dias, se elas se distribuem com regularidade entre populações… o que mais precisamos para designar tal estado de coisas como uma política pública – não apenas de Estado – de extermínio? De autorização para o extermínio? De legitimação do extermínio como resolução de conflitos morais e políticos?)
Efeito mais nefasto da prática do argumento-Polinices: deixar muitos de nós na posição de Antígona. Por mais que reclamemos, esbravejemos, façamos as exéquias de um ou outro cadáver… por mais que tentemos… seremos silenciados, restaremos impotentes… o argumento-Polinices nos calará de novo, com um exemplo fulgurante da vítima-que-no-fundo-é-algoz… (Quer defender traficante? Olha só esse vídeo aqui dele botando o coleguinha no micro-ondas! Quer defender muçulmano? Olha ele aqui arrancando clitóris das mocinhas! Quer defender adolescente infrator? Olha… etc. etc. etc…).
Erro radical para desmontar o argumento-Polinices: erigir o algoz-que-no-fundo-é-vítima. Ora, a questão não se reduz a essa obviedade… que pobres excluídos e violentados todos os dias se vinguem e tenham a violência como recurso prioritário à inclusão… A questão é por que diabos tais condições de possibilidade permanecem. Sempre será essa a pergunta fundamental: por que uma parcela da população só pode lutar com seus corpos mortificados? Por que devem morrer e matar para serem minimamente incluídos na conversa? Quando matar-e-morrer é falar: quando tal sinonímia foi instituída? O que a mantém? Quais seus ganhos secundários? Qual sua lógica de funcionamento psíquica, social, política?
O fato de o algoz ser, também, vítima em nada o autoriza a romper o pacto pelo direito à dignidade e à vida. Em nada. Incensar o algoz-que-no-fundo-é-vítima faz uma cortina de fumaça e esconde os crimes mais nefastos: aqueles feitos por Creonte. A começar por esse crime, o crime de manter o status quo dessas relações de poder. Os crimes dos ricos são sempre escamoteados por esse argumento que tem lá sua grande dose de verdade… mas, observem: tem um efeito de hipostasiar um só tipo de crime… o crime do pobre é o crime a ser observado, criticado, medido, eliminado… nesse entretempo, o crime do rico continua ceifando vidas e sendo completamente obnubilado… e para que esse crime de “cima” nunca seja tematizado, é bom que se mantenha sempre viva a possibilidade de criarmos mais e mais criminosos lá “debaixo”
Observem ainda: uma das condições para o argumento-Polinices funcionar é uma discrepância de forças. O pai que espanca o filho é paradigmático. Ele vai argumentar: mas ele é bagunceiro demais! Ora, tal argumento não justifica espancar a criança. E também não adianta APENAS defender a criança nos termos de apontar para sua tendência antissocial como um pedido de socorro. A questão é: o que mantém essa situação? Como alterá-la? É preciso reconhecer essa discrepância de forças e neutralizar o efeito perverso nela possível: qual seja, transformar um na relação em objeto parcial, alguém destituído de humanidade, no limite, objeto-dejeto.
E quão rápido surgirão as Ismênias! As que vão defender, em silêncio obsequioso, a ação de Creonte. Até se escondem sob o manto da covardia, mas, no fundo, amam a política de Creonte. Ismênia bate panelas na varanda quando a corrupção é do outro, mas nunca bateu panelas pela fome de séculos, pela falta de escolas e hospitais públicos. Nunca. Nunca reclamou da violência que dizima seus conterrâneos. Apenas daquela que chega, “perdida”, à sua porta, ao seu bairro nobre. Ismênia é tão cínica quanto Creonte, mas não diz claramente a que vem. Esconde-se sob o medo: é melhor manter a ordem, é melhor uma ditadura que queira mesmo o bem, que silencie de uma vez por todas os conflitos sociais, que resolva, por fim todas as nossas questões políticas… Ismênia será a primeira a se lembrar Etéocles: ele sim, lutou pelo País! Ele sim, quis defender o País, o status quo! É ele nosso heroi! Ele é incorruptível! Ele apoia Creonte que quer matar apenas aqueles violentos! Podem até tirar Creonte do poder (não deixem que ele saiba desse meu desejo), mas é para colocar um Creonte ainda mais violento, ainda mais voraz, um Etéocles ressuscitado que nos vingue de qualquer possível Polinices por vir! Quanto mais cedo matarmos Polinices, quanto mais evitarmos o luto e o reconhecimento do que significa sua morte, melhor!
O fantasma de Etéocles também aparecerá frequentemente no Estado tomado pelo argumento-Polinices… Ele reaparecerá sob a forma, p.ex., do político que irá “resolver tudo”, mas sem mexer em nada nas condições que tornaram tais relações de poder possíveis! Etéocles veste a camisa da seleção brasileira! Do seu palácio, de sua fazenda, de seu helicóptero, joga flores aos destentados que jura defender! Ele vai salvá-los, mas sem mexer nos impostos dos mais ricos! Ele vai salvá-los com a cantilena do esforço e do mérito! Ele vai contar histórias bonitas de um Silvio Santos que nasceu pobre, trabalhou muito e venceu na vida! O fantasma de Etéocles brilha e ofusca as masmorras de Creonte.
Discrepância de força entre o adulto e a criança, o ladrão e o assaltado, o assaltante e o policial, o Estado e o cidadão. Todas essas discrepâncias têm um destino pulsional e um uso político. Nenhuma é natural. Todas podem ser manejadas, rearticuladas, repensadas. Em todas o argumento-Polinices pode ser usado, mas é sobretudo na relação entre Estado e cidadão que tal argumento é intolerável. A discrepância é infinita. No limite, é o Estado quem deve proteger o cidadão, inclusive protegê-lo do próprio Estado. Dar condições concretas, à altura do Estado, de luta contra o Estado. A lógica fascista é basicamente quando essa luta entre discrepantes é tornada impossível em desfavor do mais fraco. A lógica cínica é quando tal estado de coisas é descrito como inevitável e explicado como visando a um bem maior. O argumento-Polinices reúne essas duas lógicas e põe em operação concreta, no dia-a-dia do Brasil, a prática de extermínio de pobres e negros.
A citação dos 50 mil mortos foi retirada dessa matéria: http://www.cartacapital.com.br/sociedade/violencia-brasil-mata-82-jovens-por-dia-5716.html