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Até que a morte os una

09/08/16

Até que a morte os una.

Há um modo terrível de controlar a dor proveniente do passado (da situação originária, dos momentos constitutivos do eu): produzir situações de dor. Como se o eu dissesse: não me causaram dor, eu mesmo me causo dor! E ai de quem encontrar um(a) parceiro(a) com esse regime de funcionamento. O sujeito pode muito bem estragar tudo para causar dor no outro e esta dor, por sua vez, vai lhe causar dor, desta vez, com clara autoria. O sujeito irá se culpar – uma das grandes traduções internas da dor – pelo seu fracasso, pela sua burrice, por mais um mau passo.

O mortífero une: é esse o risco. Se articular com um outro que nos cause dor é também uma forma de lidar com nossas dores originárias. É uma forma de tornar consciente e presente um tormento inconsciente e pretérito. O masoquismo é, antes de tudo, uma forma de controlar a dor, tentar fazer um circuito inteligível pra ela.

A relação amorosa pode ser, então, uma articulação para repetir uma situação de dor anterior. Repetimos causando dor no outro, fazendo com que essa dor nos cause dor e ainda entrando, repetidamente, em relações que nos cause dor. São múltiplas derivações de uma defesa: atualizar o pretérito, revivê-lo no presente é uma forma, na maior parte das vezes, malograda de elaborá-lo.

A análise talvez nos ajude a pensar no uso de nossas dores e das do outro. O quanto é tolerável, desejável (já que é parte importante de nossas defesas), causar e sentir? A questão se impõe, pois, convenhamos, parece inevitável que isso aconteça em alguma medida.

Em alguma medida… Uma advertência importante quanto a isso: não se trata de quantidade, mas de potência. Sabemos dos venenos cuja potência não se mede pela quantidade, mas pelo efeito que causam. Uma gota é suficiente para nos trucidar. Em outras palavras: o objeto pode ser amabilíssimo, mas se ele possui aquele traço, aquela gota venenosa, que provoca aquela dor específica, desestruturante, devastadora: isso basta. Basta uma gota… mesmo num amável oceano de tranquilidade. (Afinal, o que faz holding também não é quantidade, mas qualidade, potência do afeto).

Até que o mortífero os separe… até que saibamos lidar melhor com o nosso mortífero e o do outro… essa é certamente uma das tarefas precípuas do cuidado de si engendrado por uma análise. Desprezar esse achado é insistir em fazer do laço uma mortalha – como nas impressionantes imagens de Mapplethorpe. Pode até funcionar, mas cabe colocar em questão se é assim, necessariamente, que deve ser e continuar.

ROBERT MAPPLETHORPE: IMAGEM DA SÉRIE WHITE GAUZE, 1984 ROBERT MAPPLETHORPE: IMAGEM DA SÉRIE WHITE GAUZE, 1984