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Observações esparsas sobre a ideia “deus é fiel”. 

09/08/16



1) Confiabilidade é uma das formas mais concretas e remotas e necessárias do amor. Acreditar que o outro estará lá, quando vc precisar dele. Que ele não vai te deixar… além disso: que ele saberá, muitas vezes, se antecipar para te acolher de tal forma que seu gesto pareça mesmo inventar aquilo que efetivamente encontra. As relações precoces com adultos confiáveis geram segurança em si mesmo, são paliativos contra agonias impensáveis.

2) Que tais relações sejam, mais tarde, deslocadas, transferidas para a religião não torna essas relações menos importantes. Muitos precisam e precisarão manter a crença infantil num outro confiável. Mas o infantil aqui não é sinônimo de ingênuo ou falso ou menor… Significa ainda a potência da fantasia, sua importância fundamental…

3) Há outros deslocamentos da confiabilidade… Podemos crer até mesmo na ciência como um outro confiável q irá apaziguar nossas angústias diante das incertezas do mundo… Freud usou uma expressão bizarra no “Futuro de uma ilusão”, seu livro sobre religião: ele dizia acreditar no deus Logos… Olhem q contradição: num livro no qual ele tenta desmontar a idealização dos outros originários, ele produz uma idealização tão infantil quanto as outras… tão supostamente à prova do pulsional quanto as outras…

4) É preciso então prudência ao desejar retirar ou criticar o deus / as crenças-de-garantia dos outros: cada um vai ter o seu / as suas… Imagine a importância de acreditar que há mesmo um outro que não vai te trair, que vai te deixar seguro sempre, que vai te dar a certeza de estar lá… Em troca do que, em nome de qual sadismo, vamos lá dizer pro sujeito: ou, isso é ilusão, fica aqui na angústia, diante dos excessos e das incertezas…

5) Nada impede, no entanto, que cada um possa falar do que lhe angustia e do que lhe apazigua. Mas ninguém tem o direito de achar que isso que lhe apazigua deva necessariamente apaziguar o outro… cada um com seus objetos e crenças de segurança. Respeitar isso é bem importante.

6) Todos já foram, em alguma medida, traídos. Todos tb, mais ou menos voluntariamente, traíram alguém. Desde o caso mais banal, de uma expectativa que não foi dita e que, por isso, não foi realizada, até os casos mais trágicos da traição (amorosa, política, moral…). A traição também tem matizes importantes, mas é notável como é tarefa árdua reparar o objeto traído, como essa ferida narcísica é dificilmente cicatrizável. Afinal, algo do constitutivo foi reaberto… Perder a confiabildidade de alguém tende a ser algo irrecuperável / irreparável… A capacidade de perdoar (e a de ser perdoado tb…) muito provavelmente tem muito a ver com história libidinal que constituiu a confiabilidade do sujeito…

7) Deus é fiel… fundamental lembrar a dobra perversa que estabelece a confiabilidade… é justamente por essa assimetria radical que os pactos sadomasoquistas mais radicais podem se estabelecer… pensem na história de Jó como paradigmática aqui: o sujeito crê tanto no outro, confia tanto no amor do outro, espera tanto do outro… q pode se submeter a tudo, q vê sentido pleno e construtivo em toda violência e destruição que o outro lhe endereça… É por isso que os crimes contra as crianças nos geram tanto ódio… Além da violência, há o abuso pela confiança que a criança deposita…

confiança