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Notas sobre o filme “Wild”

22/01/17

wild

1) “She died a famous woman denying
her wounds
denying
her wounds came from the same source as her power”
Os versos do poema de Adrienne Rich, sobre Marie Curie, sintetizam bem o que é fazer da ferida fonte de trabalho. No filme, a todo momento as feridas de Cheryl Strayed são mostradas. Como se aos poucos ela pudesse mesmo ver e sentir as feridas que recusava a ver e elaborar. Muitas vezes, o corpo precisa falar muito alto para que alguma palavra, algum exercício de simbolização se imponha e faça um melhor trabalho.

2) Strayed significa “to deviate from the direct course, leave the proper place, or go beyond the proper limits, especially without a fixed course or purpose; ramble”. Não deixa de ser curioso como uma personagem marcada por esse nome opta por fazer uma trilha. Há enormes riscos em se perder, além da violência masculina que a todo momento ronda o percurso. O inferno do luto é nos deixar sem rumo. Sem norte. O objeto de amor é um ponto de ancoragem pra pulsão. É um leito profundo pra um rio. Sem o objeto: inundação, água sem controle, sem rumo, dificilmente potável, aproveitável pra o q quer q seja…

3) O luto de Strayed tem muitos tempos: luto pelo pai violento e alcoólatra, luto pela mãe, luto pelo namorado. A mãe é uma mulher absolutamente comprometida com a vida. Insiste em ver os filhos como algo q fez valer a pena o casamento ruim. Ela volta a estudar quando mais velha. Ela se preocupa genuinamente com o outro. Aqui tem um ponto importante: ela pede pra sacrificar uma égua que estava doente. Segundo ela, foi o animal que a salvou durante o período de luto q fizera do fim do casamento. Ela, que já estava com câncer, pede aos filhos que deem um fim suave à égua. É uma cena importante porque tem algo do sacrifício apresentado como redentor ou transformador ou que faz cessar a dor. A mãe de Cheryl avisa às enfermeiras antes de morrer que quer doar suas córneas. Essa é a figura principal: ela é a fonte que Cheryl precisa para saber que pode recomeçar. Que a morte não necessariamente cessa o jogo do amor. Que a vida sempre recomeça, apesar de não ser eterna…

4) É infernal a condição de mulher. A ameaça de estupro é insuportável. Parece nunca haver segurança suficiente. A todo momento a personagem – os espectadores tb – esperam algum tipo de violência…

5) Ao longo do namoro, Cheryl Strayed trai o namorado de forma compulsiva. Transa com qualquer um, em qualquer lugar. Ela diz ao terapeuta, numa única sessão q teve: faço como os homens. Não me conecto com quem transo. Metáfora importante que a relação sexual permite: se ligar e não se conectar. Transar com todos para não se ligar a ninguém. A escolha de se colocar numa longa trilha de forma solitária é uma elaboração desse desejo de ficar só. A passividade ainda está no comando, mas há um claro fechamento de si para o outro.

6) A tomada de decisão pela trilha se dá quando ela descobre que está grávida. O filho q ela não vai ter e cujo pai ela não sabia quem era, é o elemento que dispara esse fechamento para o outro. Cheryl sabia que ela não tinha condições de ser mãe enquanto ela estivesse tão identificada com sua mãe morta. Uma mãe que conseguia gozar de alguma forma dessa condição de mãe, que localizava seu masoquismo fazendo-o trabalhar nesse ideal… Para Cheryl essa via já estava fechada… para uma mulher moderna essa via de elaboração da passividade / masoquismo já não é tão facilitada…

7) Num texto muito bonito sobre o tempo (Le temps et l’autre), Laplanche lembra que no luto estamos como Penélope, esperando o retorno do outro… tecendo e destecendo. Infelizmente, seja na morte, seja no fim de algumas relações, parte fundamental do luto é reconhecer que a resposta do outro não virá. Penélope pode guardar seu tear, pode tecer com alguém diferente, permitir novas linhas, novas costuras. É isso que Cheryl parece conseguir. Tem uma cena bonita que acontece depois que ela transa com um cara q ela conheceu numa das cidades da longa trilha. Ela transa de forma tranquila e sem nada daquela compulsividade q a objetificava. Ao amanhecer, ela escreve o nome de Paul na praia. E escreve no diário: toda vez que ia à praia, escrevia seu nome na areia. Escrevi hoje pela última vez. É uma metáfora potente… escrever o nome de alguém na areia… o trabalho de amor é bem isso: escrever todo dia o que o vento-mar pulsional vem sempre borrar… fazer o luto é compreender que por mais fundo que escrevamos, por mais vezes que o façamos, nunca teremos o objeto… nunca teremos uma garantia de sua resposta… o trabalho de luto é bem sucedido quando entendemos não ser mais necessário esperar…

8) Cheryl come as cinzas da mãe morta. Todos fazemos isso quando temos alguém que cuida genuinamente de nós. É só a partir dessa incorporação do outro que cuida que podemos também nos tornar capazes de cuidar de alguém. É um paradoxo importante: só cuido de mim mesmo quando incorporo o outro que cuida de mim. Cheryl flerta com a droga (heroína), no mesmo período em que transava sem cuidado com qq um. A droga tb era usada em companhia de outras pessoas, mas ela me parecia absolutamente sozinha. Como se tentasse fechar um curto-circuito com o objeto. A droga como um seio bom sempre à mão. Obviamente, os aspectos mortíferos desse seio plenamente satisfatório logo, logo se mostram compulsivos e assujeitadores. Algumas drogas (acho q a cocaína e seus derivados funcionam assim) exigem que o sujeito desapareça. A promessa é de tornar um só com o objeto… e isso é sempre mortífero.

9) Estar sozinha foi a forma através da qual ela percebeu que nunca se está sozinha. E que tb há um modo terrível de tentar estar sozinha com alguém – vc me penetra, mas no fundo sou totalmente impenetrável a vc, como não consegui ser à violência que meu pai dirigiu a mim e à minha mãe. Cheryl consegue ao longo de sua caminhada ficar sozinha na presença de alguém. Para Winnicott, isso é uma enorme conquista. Trata-se de saber que o outro que cuida de mim está lá fora quando preciso dele e está tb dentro de mim e posso usar as qualidades de cuidador dele para cuidar de mim mesma.

10) Na breve sessão de psicoterapia, Cheryl vê uma imagem no quadro. A via láctea e uma seta dizendo “vc está aqui”. Ela interpreta: “eu odeio essa figura. Eu a vejo em todo lugar. Por que vcs gostam de mostrar nossa insignificância?”. O luto mostra o absoluto sem-sentido da vida. Ao longo de sua caminhada, Cheryl pega uma carona com um casal que mantém no espelho retrovisor a foto do filho que fora atropelado aos 8 anos. A mãe de Cheryl morre de câncer aos 45. Quando ela estava no hospital, Cheryl chega a rezar pedindo um milagre. “Deus é uma vadia (bitch) inútil”: frase que ela deixa marcada ao longo de sua caminhada. Deus é o tipo de resposta que tamponaria o horror da contingência radical, do puro acaso. O trabalho bem sucedido do luto envolve aceitar a transitoriedade de tudo: de nós mesmos, do outro, do mundo tal qual conhecemos e amamos, das relações… A melhor forma de aceitar a transitoriedade – parece ser essa a lição da mãe de Cheryl – é conseguir perceber e viver o bem, apesar do mal. “Somos ricas em amor”, a mãe de Cheryl diz… da mesma forma que insistia em ver a beleza do pôr ou do nascer do Sol: todos os dias ambos espetáculos estarão à disposição; basta que vc se coloque no caminho deles. Pegar um pouco de erva no caminho (lavanda?), esfregar entre as mãos, e sentir o perfume… é tão trivial, mas traz algum conforto, apazigua, permite continuar a caminhar. Não se destruir, não permitir ser destruída pelo outro: é pra isso que serve o trabalho do luto. Poder brincar pelo prazer do brincar, pelo fiapo de sentido que essas coisas trazem… cantar uma música, sentir um cheiro, fazer uma caminhada… um pouco junto, um pouco sozinho… sem se preocupar muito com a exigência autoritária que faz a razão em dar sentido a isso tudo…