1) O filme de Allen pode ser visto como um ensaio sobre os efeitos trágicos da ingenuidade. Ingenuidade de Bobby, o apaixonado que vai ter que lidar com o fato de ser trocado pelo tio – “um homem de maior envergadura”, nas palavras da própria Vonnie… Ingenuidade também do cunhado comunista e que quer resolver suas questões com os vizinhos conversando… Ingenuidade que será contraposta, primeiro, a um tipo de sabedoria prática de Vonnie – escolho o homem já mais velho, com mais estabilidade financeira e não me deixo levar pelas paixões. Depois, a ingenuidade será contraposta à brutalidade de Ben, irmão de Bobby, que resolve todos os conflitos matando as pessoas e soterrando-as sob o concreto…
2) “Life is a comedy written by a sadistic comic writer”… e, podemos continuar, a matéria-prima que dá essa substância sadomasoquista aos roteiros que norteiam nossas vidas, são as relações amorosas. O filme de Allen mostra isso brincando com um topos literário importante: a escolha do objeto por amor ou conveniência. A troca do amor jovem aberto às contingências pela vida segura e assegurada financeiramente. O caráter de autoconservação desse tipo de escolha parece dar um ar ora covarde, ora sádico para Vonnie.
2.1) A história de Vonnie me fez lembrar a Lili, do famoso poema de Drummond:
“João amava Teresa que amava Raimundo
que amava Maria que amava Joaquim que amava Lili
que não amava ninguém.
João foi para os Estados Unidos, Teresa para o convento,
Raimundo morreu de desastre, Maria ficou para tia,
Joaquim suicidou-se e Lili casou com J. Pinto Fernandes
que não tinha entrado na história.”
A escolha de Vonnie dispara o alarme do romantismo que não admite que a escolha apaixonada seja substituída por qualquer outra, por qualquer razão. O narcisismo, no ideário romântico, está sempre além das necessidades básicas da vida: queimamos os móveis da casa para nos aquecer, mas não nos “prostituímos”. Aliás, Allen explora com humor essa metáfora da prostituição: Bobby é totalmente incapaz de transar com a prostituta quando sabe que ela é judia como ele e que está ali porque não conseguiu seguir sua (amada, desejada) carreira de atriz. A ingenuidade de Bobby produz essa identificação com aquele que sofre. Tática da idealização romântica: toda escolha objetal que não for feita por amor deve ser rebaixada a um tipo vil de prostituição ou covardia. A adesão de Vonnie às conversas vazias da alta sociedade parecem mostrar isso…
2.2) A história de Bobby me faz lembrar a do eu-lírico da canção “Black”, da banda Pearl Jam:
“I know someday you’ll have a beautiful life,
I know you’ll be a star,
In somebody else’s sky,
But why? why?
Why can’t it be, oh can’t it be mine?” (https://youtu.be/
Bobby demora demais a descobrir que o amante de Vonnie é seu tio Phil. Por mais que ambos enderecem a ele os relatos que poderiam facilmente denunciar que eram amantes, ele só vai se dar conta quando ele vê a carta que Vonnie dá a Phil. Uma carta sempre chega ao seu destino… Como o eu-lírico da canção, Bobby vai se perguntar por que ela não pode ser dele e vai exigir que ela faça uma escolha.
3) Dos muitos chistes do filme, este é ótimo: “viva sua vida como se fosse o último dia. Um dia vc acerta!”. Articulando com a hipérbole “amor não correspondido mata mais que tuberculose”, podemos dizer que a ideia do filme é mostrar isso: amar apaixonadamente carrega um risco de morte. Ao contrário da tuberculose, para o mal de amor não temos vacinas eficazes. A solução que Bobby encontrou, casar-se com outra Vonnie, não deixa de ser uma tentativa de lidar com o bacilo do amor… Não funciona totalmente, mas ao menos preserva o sujeito.
3.1) É interessante lembrar a origem etimológica de ingenuidade. A palavra vem do latim e significa puro, não alterado… Bobby definitivamente se alterou, mas sem mudar… A paixão por Vonnie continua e ela, mesmo num encontro bem posterior, reitera a praticidade razoável das escolhas amorosas (ele já está casado, já tem filho etc). A alteração está num tipo de aceitação magoada, de obediência ressentida… Esse modo de ler ainda continua sadomasoquista, como se ele sempre guardasse o troféu da onipotência consigo: ela me despreza, mesmo quando lhe ofereço meu amor puro, sem mistura. Ela me troca por segurança e grana, essas coisas impuras. Eu, que sou tão bom, devo me contentar com um simulacro dela, preservado na metonímia de um apelido. (Observemos que ao culpar o outro por seu infortúnio – que é verdadeiro e doloroso – ele acaba por colocar-se numa posição sádica também…).
4) Nota mais técnica: do ponto de vista psíquico, a meu ver, a ingenuidade é uma derivação do masoquismo originário. Recusa ao saber; recusa radical em admitir matizes – o ingênuo acredita na pureza; recusa em perceber que aquilo que o outro diz e faz sempre tem múltiplos sentidos, múltiplas razões – o ingênuo quer reduzir tudo muito rápido a uma só razão, a um só sentido… São pelo menos esses três tipos de recusas que constituem a ingenuidade do ponto de vista psíquico. Um tipo de defesa que parece estar ligada à impossibilidade de desconfiar do outro… e isso abre o caminho para pensar na situação originária que dará origem à história libidinal do sujeito que irá ocupar esse lugar do ingênuo… O plot twist do ingênuo, é bom lembrar, é que ele fala o que de maneira geral deve ser escamoteado (e isso, muitas vezes, pode ter um efeito sádico e trágico). É a criança que grita a nudez do rei… no conto de fadas, o rei se envergonha, mas tenho dúvidas se, fora da literatura, essa criança não seria guilhotinada…