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Notas sobre o filme “Julieta”

22/01/17

julieta

 

1) “Sou eu quem devo te agradecer por não me deixar sozinha comigo mesma”, é assim que Julieta responde ao agradecimento que Lorenzo faz a ela: “obrigado por não me deixar envelhecer sozinho”. De um lado, a recusa em compartilhar uma história de dor, de tentar elaborá-la com alguém; por outro lado, a crença confiante de que há companhia genuína, desejo de estar junto. Ao que parece, Lorenzo é como um elemento de segurança, um tipo de vedação que se rompe tão logo Julieta recebe notícias de Antía, através de um encontro fortuito com Beatriz.

2) “Tua ausência enche minha vida por completo e a destrói”. Perder uma filha / um filho serão as tragédias que unirão Julieta e Antía ao final do filme. No caso de Julieta, ela pôde recuperar sua filha, mas poderá usar a experiência de sua dor para auxiliar Antía no trabalho de luto que terá que fazer pelo filho afogado – assim como o pai – aos 9 anos de idade. Parece não haver dor comparável a essa perda. São tamanhos os investimentos narcísicos, são tantas as identificações que parece ser impossível viver sem a espera da filha que partiu.

4) Um dos elementos mais fundamentais do filme é o silêncio. Efeito da dor, o silêncio que Antía endereça a Julieta e, depois, o que Julieta endereça a Lorenzo é o dispositivo trágico que tem por principal efeito reduzir o sentido da separação. A morte de um filho é talvez o paradigma dessa ruptura radical de sentido. O curso natural da vida oferece uma via facilitada e precisa para que dotemos de sentido nossa existência. Se a morte torna impossível a continuidade da conversa, há algo ainda mais trágico quando a filha se recusa a conversar com a mãe, a abrir espaço para o diálogo, mesmo que seja para a expressão de um ódio incontornável ou de uma mágoa intransponível. Antía destrói Julieta pelo silêncio que lhe endereça. Se há algo que encarne a ingratidão, o silêncio daquelas de quem cuidamos é um candidato exemplar.

4.1) Lorenzo perdoa Julieta por ela ter escondido dele, por tanto tempo, sua história de dor. Ele insiste e se põe ao lado dela. Em sua tentativa de suicídio, é ele quem cuida dela. Um ponto fundamental: ele não invade seu espaço, ele aguarda, espera, sem forçar muito, para entrar. Mas é claro o desejo e a disponibilidade dele em participar dessa história, em acompanhá-la. Ao final do filme, Julieta aceita ser cuidada por Lorenzo, assim como foi por Xoan.

4.2) A cena do suicídio no trem é reveladora quanto aos potenciais efeitos mortíferos do silêncio. O sujeito que puxa conversa – de forma desastrosa e, de fato, ameaçadora – com Julieta precisava ser ouvido. A recusa de Julieta, obviamente, deve ter sido apenas mais uma gota no oceano de histórias de abandono e não reconhecimento daquele sujeito. Mas é essa nossa hipótese básica sobre o suicídio: resposta diante do silêncio do outro. Resposta que torna quase impossível não ser ouvido, resposta-limite que obriga o outro a escutar.

5) O filme de Almodóvar é sobre a possibilidade do reencontro. Quais as condições mínimas para que haja uma retomada de uma relação partida? Como unir de novo as pontas dos nós que constituía uma relação? É possível, depois de tantos anos (13, no caso de Julieta e Antía), uma reaproximação? Se sim, que tipo de elaboração deve ter sido feita, tendo em vista a ruptura com tão pouco sentido e tão abrupta?

5.1) Há muitos elementos do mundo grego no filme. Cito dois deles que nos ajudam a pensar na lógica do reencontro. (A) Antía é o nome de uma personagem do romance “Os Efésios”, cuja autoria é atribuída a Xenofonte de Éfeso. Trata-se da história de dois apaixonados, Antía e Habrócomes, que depois de muitos desencontros, ao fim, se reencontram e ficam juntos. (B) Julieta conta numa aula a história de Ulisses e Calipso que também é a história de um desencontro, mas sobretudo uma história de amor: Ulisses recusa a juventude eterna e a imortalidade para retornar para Penélope e à sua morada.

5.2) Encontrar um objeto é sempre reencontrá-lo. A famosa frase de Freud ganha seu sentido quando o reencontro não cessa de acontecer mesmo quando o objeto não está presente. A representação do objeto funciona como um animal furioso que só se acalma quando é alimentado. A presença concreta do objeto parece ser uma condição para que essa representação não funcione como produtora de dor. E aqui vemos, mais uma vez, a importância da conversa, do sentido compartilhado, da explicitação do desejo de estar junto.

6) A história do pai de Julieta, apesar de coadjuvante no filme, é importante pois mostra a potência do recomeço. Seja mudando de profissão como ele faz, seja constituindo uma nova parceria amorosa, uma nova família, ele mostra que é possível viver grandes perdas e longos processos de cuidado – a mãe de Julieta ao que parece passa alguns anos demenciada (Alzheimer?) e é cuidada pelo marido e a ajudante que ele assume posteriormente como nova esposa. É uma história marginal no filme, mas não é desprezível quanto à sua força.

7) Imagino que precisaremos desconfiar da posição, digamos, vitimizada de Julieta. É verdade que ela demonstra irritação com Xoan sobre o fato de ele ainda transar com Ava, mas ela só demonstra essa irritação muito tempo depois. Aqui já aparece o dispositivo do silêncio que produz um efeito de bomba-relógio. Observem como essa é a lógica do trauma: Julieta sabe de algo que a machuca; espera muito tempo e vive como se nada estivesse acontecendo; e só então, mais tarde, revela sua irritação e sua dor. Isso deixa Xoan com uma culpa irreparável: o tempo já passou. O silêncio visa produzir o irreparável, deixa o outro de mãos atadas, preso para sempre a seu mal-feito. Reparem que de vítima – que ela de fato foi – podemos também pensar na posição sádica de Julieta. É exatamente nessa posição que Antía se reconhece e é dela que parece pretender sair quando finalmente diz à mãe algo de sua dor.

8) O filme de Almodóvar é brilhante: no roteiro, nas cores, no melodrama. É uma obra que nos ajuda a pensar em como é trabalhoso nos mantermos juntos. Parte deste trabalho implica, ao que parece, em nunca endereçar silêncio demais. (Isso vale, claro, tb para os analistas!). O trabalho de amor faz girar o desejo de escutar e o desejo de ser escutado. O de cuidar e o de ser cuidado. Ser flexível nesse pêndulo é preservar o que temos de transicional. E este espaço, como sabemos, conserva toda potência criativa para continuarmos a nos inventar.