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Notas sobre o filme “Solaris”

22/01/17

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Parece absurda a comparação entre os enigmas do universo e aqueles engendrados pelo amor. Aos poucos, no entanto, a ciência avança e vai dando respostas sobre as estrelas, o mar, a vida subatômica… Não podemos dizer que as ciências humanas – a Psicologia e a Psicanálise em particular – têm destino semelhante. Quando muito, fazemos um elogio ao enigma das relações amorosas, mas não conseguimos nos proteger dos traumas oriundos daí. O contato com a alteridade é mortífero demais e as soluções encontradas para dirimir esse efeito são apenas menos disruptivas e nunca plenamente seguras ou satisfatórias.

Solaris nos ajuda a pensar a relação entre a ética e a ciência; a técnica e o amor. Paira no ar a possibilidade de destruírem o oceano de Solaris. Isso provavelmente porque ele nos mostra o intolerável: quando conhecemos o mundo, conhecemos a nós mesmos. Sempre seremos visitados por nossos fantasmas, nossos limites, nossos medos: mesmo quando nos escondemos sob a técnica racional mais pura.

Solaris me parece uma reflexão capital sobre a importância da filosofia, das artes e das humanidades em geral. É um questionamento radical: de que nos adianta conhecer o mundo, se dentro de nós há também um mar insondável, cujos enigmas, se não respondidos a contento, nos enlouquecerão inevitavelmente? De que adianta tanta razão e técnica se somos surpreendidos e dominados pelo mar das pulões, o oceano irracional dos afetos?

O filme nos ajuda a levar a adiante a advertência que a Psicanálise tem nos feito há muito: convém prudência diante do desejo de saber. É sempre desejo, desde o início até o fim. “Lembre-se de Hiroshima”, um personagem nos diz, para lembrar que o máximo da técnica possui ressonâncias éticas implacáveis.

Para Freud, o julgamento e a ética começam no ato de provar o mundo. Aquilo que nos apetece e pode ser internalizado é bom e existe… aquilo que odiamos é mau e não pode existir. No seu texto sobre a negação, aprendemos que a epistemologia tem origens orais. Saber e sabor vão juntos. Essa hipótese desbanca a razão como ferramenta isolável dos afetos. Mais: torna a razão refém dos afetos, atravessada e determinada por eles. Nunca estaremos plenamente seguros sobre o que sabemos, por que desejamos saber ou o que fazer com o que sabemos.

Freud sabia que não podia fazer da ciência um insignificante problema amoroso… temos paixão pelo saber… e sabemos bem do que somos capazes quando estamos apaixonados. Ao articular de forma tão forte ciência e paixão, Freud inverte a equação e propõe examinar as duas conjuntamente. Não se pode fazer do amor um insignificante problema científico…

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“É como se eu não devesse perdê-lo de vista”, no romance de S. Lem… O que importa aqui é pensar como a fantasia da mulher (Hari no filme, Rheya no romance) que se matou por amor retorna até Kris.

Freud chegou a mencionar que haveria uma comunicação de ics. para ics… Nos textos sobre ocultismo e telepatia, elevai tentar desmontar a tese de uma comunicação telepática mostrando a prevalência do desejo inconsciente, da permanência do objeto interno… O oceano de Solaris pode ser lido como uma metáfora desse tipo de comunicação. Não deve ser por acaso que a “cena” escolhida seja justamente a cena da devastação amorosa.

A cena do capítulo 5, quando Kris tenta dar sonífero para Rheya e depois a manda pro espaço, é uma ótima forma de ver que o recalcado não coincide com o esquecimento. Nos casos de devastação amorosa, o sujeito vive esse impossível de esquecer. No caso de Kris, a quem essa devastação foi endereçada, os efeitos da culpa e as ressonâncias identificatórias só puderam aparecer nessa comunicação com Solaris.

O ponto brilhante do romance é realmente articular esse reencontro amoroso com a questão da busca do saber. É como se Lem – e Tarkovsky soube explorar isso muito bem – nos dissesse que ambos procedimentos coincidem de alguma forma. Amar e conhecer, ser amado e ser reconhecido.

Ficções científicas como essa lembram do nosso desamparo, da nossa ilusão de que a razão poderá nos salvar. Contra essa ilusão, é fundamental retomar os efeitos que um objeto de amor nos causa. O objeto que, já morto, é “apenas” uma representação, através da qual o pulsional pode atacar o eu com fúria extrema.

 

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A leitura americana (no filme dirigido por Soderbergh) dá um final feliz para o que o romance de Lem e a versão de Tarkovsky problematizam. Qual a questão? A imortalidade do desejo. O inferno de ser capturado pela repetição, de ter o desejo apreendido numa representação que se impõe de forma soberana e incontornável. Fausto às avessas, como é descrito um personagem do romance: o sujeito quer a cura para a imortalidade… do desejo, ou melhor, a imortalidade desse circuito particular de um trauma.

Do ponto de vista solarístico, por assim dizer, o trauma é o aprisionamento do desejo numa representação que a um só tempo é sua prisão repetitiva e sua garantia de realização.

O final feliz no filme de Soderbergh (com galã e tudo…) tem o mérito de suspender a questão da vida e da morte. Trata-se no entanto de um final melancólico. Solaris venceu: para fazer frente à imortalidade traumática do desejo, o sujeito escolhe renunciar a si mesmo enquanto eu, enquanto instância que tenta controlar o desejo. O pobre eu deve renunciar às tentativas de trocar de objeto, ele se rende ao “realismo” do objeto traumático: não há outra via, não há outra vida sem ele (ela, Rheya, no caso…).

Nas três obras – romance polonês, versão russa e versão americana – acho q aparece bem claramente o horror que o suicídio endereçado a alguém provoca. O romance de Lem é realmente genial nessa provocação que ele dispara: de que nos adianta tentar dar conta de nossa fragilidade espacial, de que adianta tanto saber, se nossa condição humana nos torna reféns do amor? De que adianta tanto trabalho para dirimir nossa solidão no universo se é diante da perda do objeto de amor que somos efetivamente sós e devastados?

O filme de Soderbergh ainda apresenta Gordon que consegue escapar à sedução / solução melancólica. Ela destroi seu objeto e volta à Terra. Nela vemos claramente o tipo ideal de heroína esperada por Freud em seu texto sobre a transitoriedade. Destruir seu “duplo”, deixá-lo em Solaris: árduo trabalho de luto. É possível existir depois do trauma. É possível sobreviver a grandes perdas. É possível resistir ao abismo que a certeza da representação-traumática propõe. Propor essa existência, essa resistência, é, acredito, boa parte do trabalho analítico.