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Nem sapo, nem princesa: resenha

11/02/18

Livro Cassandra

 

Acabo de ler o livro “Nem sapo, nem princesa: terror e fascínio pelo feminino”, da Profa. Cassandra Pereira França.

O livro é a narrativa de um caso clínico de um menino de pouco mais de 4 anos de idade. A demanda dos pais: o extremo incômodo (principalmente do pai) com o fato de a criança só querer se vestir como mulher, querer bonecas de presente, enfim, querer ser uma menina.

Várias sessões do caso clínico são narradas de meneira envolvente, fazendo com o que o leitor queira seguir a história até o final. Aos poucos, vamos entendendo de onde vem o desejo de B. em ser menina: o desejo da mãe ter uma menina parece ter papel importante nessa trama, assim como a posição que o pai assume diante da díade mãe-filho.

O livro apresenta os desenhos que B. (a identificação do paciente) faz durante o processo analítico. A técnica do desenho foi usada de tal forma que a criança possa dizer, através deste recurso, o que só aos poucos vai encontrando outros modos de simbolizar. São impressionantes as interpretações e os diálogos em torno dos desenhos da criança e os efeitos que tais interpretações vão tendo sobre o psiquismo de B. O material selecionada das mais de 300 sessões – quatro sessões semanais, durante dois anos de análise – vai deixando claro para o leitor como o dispositivo analítico é também constitutivo no sentido de fornecer o material simbólico necessário para a elaboração dos violentíssimos ataques que B. sofria.

Cassandra traz de forma corajosa e aberta suas interpretações, suas questões quanto à direção do tratamento e também excelentes hipóteses sobre a complexa dinâmica da designação do gênero e a constituição psicossexual deste paciente.

A autora faz dialogar de forma didática as teorias de Melanie Klein e Silvia Bleichmar apresentando hipóteses gerais relevantes ao final do relato não apenas quanto ao caso em questão, mas também quanto à constituição psicossexual (identidade de gênero, em especial) de forma geral. É instigante a hipótese da autora de articular o caso apresentado com o fenômeno do “crossdressing”: ela o faz tendo o cuidado de respeitar a densa complexidade do fenômeno abrindo um campo de pesquisa importante. Afinal, dentro do campo da constituição sexual (gênero, identidade e orientação) dos homens, trata-se de um fenômeno relevante: vestir-se de mulher, querer ser uma mulher. Quais as origens disso? Quais os possíveis destinos? Como tal desejo pode estar articulado a outras defesas psíquicas?

O ponto que gostaria de colocar em discussão é a hipótese levantada pela autora (p. 175-6) de que “a fascinação narcisista de B. pelo corpo feminino denunciava, exatamente, muito mais o fracasso de uma identificação do que a sua instalação. Fracasso que demandava a envoltura da roupagem materna em uma função de segunda pele.” (França, 2017).

Será possível pensar em modos de identificação, por exemplo? Identificações mais coladas à imagem ou mais compulsivas em detrimento de outras, mais simbólicas e com uma carga mais livre de tradução/criação por parte da criança? Enfim, a hipótese faz sentido e acredito que a partir dela podemos discutir esse caso clínico em debates mais ampliados.

Recomendo a leitura deste livro não apenas àquelas(es) interessados na clínica psicanalítica com crianças, mas às(aos) interessadas(os) no debate sobre gênero e psicanálise de forma geral. O livro é um exemplo notável da metodologia clássica estabelecida por Freud: o caso clínico fazendo a teoria trabalhar.