Há forças colossais em jogo muito antes que o gênero venha desempenhar seu papel no recalcamento secundário. Nos tempos originários, na fundação do que se pode chamar o sujeito psíquico, dois modos de funcionamento psíquico se opõem. De um lado, as forças desligadas e desligantes provenientes das excitações depositadas nas zonas erógenas e em toda superfície psicofisiológica do bebê. Do outro lado, as forças ligadas e ligantes provenientes dos circuitos de excitação-prazer-satisfação estáveis e constantes do holding da mãe (ou dos adultos que cuidam do bebê). Esse duplo conjunto de forças (sexuais, pois sempre e necessariamente provenientes do outro humano), sempre conflitivos, organizam-se de forma dinâmica, um contra o outro, no recalcamento originário. Organização lenta, cheia de idas e vindas, ao longo dos primeiros meses da vida do bebê. Grandes marcadores dessa organização determinam a precipitação da divisão trágica que determina o humano, destaco em especial: o aparecimento da temporalidade e suas oposições – o antes e o depois; o aparecimento da tópica: o dentro e o fora; o reconhecimento da continuidade do ser: idas e vindas entre desintegrar-se e integrar-se numa totalidade.
Só depois dessa organização primária e radical, o gênero vem fazer seu papel determinante na constituição da identidade humana. A temporalidade é colonizada pela lógica do a posteriori que traduz todos aqueles marcadores de organização psíquica para a linguagem da genitalidade e do gênero. A questão da tópica é traduzida pelo penetrável e o penetrante. O ser ou não-ser é traduzido em ativo e passivo.
[na imagem, montagem sobre “Tristan Tzara”, de Man Ray, https://www.metmuseum.org/art/collection/search/271958]