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Sobre a fantasia

16/08/18

Sobre a fantasia
 
A fantasia é uma cicatriz do traumático. Um circuito através do qual e apenas através do qual é possível colocar a tríade excitação-prazer-apaziguamento para funcionar. A fantasia tem uma dimensão inconsciente e outra consciente. A consciente é facilmente notada em nossos devaneios diurnos, por exemplo. Trata-se de um roteiro de excitação-prazer (Lust) que quando colocado em prática tende a produzir satisfação que, por sua vez, irá exigir a repetição do mesmo percurso.
 
Do ponto de vista do processo primário, é equivocado dizer que a fantasia é um roteiro, que tenha uma lógica representacional que possa se equivaler ao mesmo “filminho” que é a parte consciente da fantasia. As raízes inconscientes da fantasia são os objetos-fonte da pulsão, isto é, excitações implantadas na superfície psicofisiológica do bebê que exigem satisfação. Esses objetos-fonte são dessignificados, não produzem, eles mesmos, nenhum sentido, nenhuma narrativa, e não se estruturam como uma linguagem. São, antes, o avesso de qualquer linguagem, qualquer código, são radicalmente dessubjetivantes.
 
O que torna a análise possível, isto é, a mudança de nossos circuitos fantasísticos é justamente o fato de que as traduções conscientes do ataque pulsional (a raiz inconsciente da fantasia) podem ser modificadas.
 
Não é possível relacionar-se com o objeto senão através da fantasia. Isso se dá desde a constituição da relação com o objeto. É a excitação proveniente do objeto, isto é, do outro, que será a excitação interna que exigirá uma tradução, um roteiro, um circuito através do qual tal excitação poderá ser apaziguada.
 
Isso quer dizer que não há apreensão da realidade-em-si no campo do humano? Sim, num certo sentido, uma realidade-em-si, percebida em sua fenomenologia pura, sem ser interpretada pela fantasia que me permite vê-la, é, ela mesma, uma fantasia: o desejo de controlar o que vem do mundo.
 
Mas isso quer dizer que cada um vive um mundo privado, um mundo à parte de todos os outros? Não, pois o que nos permite perceber o mundo são os códigos (em especial os de linguagem) compartilhados que são, por sua vez, constitutivos de toda e qualquer percepção-com-sentido. O sentido só faz sentido quando codificado, quando transicional em alguma medida.
 
Isso quer dizer que minha relação com o objeto vai ser sempre minha relação com a fantasia e não com o objeto mesmo? Em certa medida sim: é através da fantasia que o objeto se torna desejável, obstáculo ou facilitador da excitação/apaziguamento. Em certa medida não: não é qualquer objeto que tem esse poder de sedução, de reabrir o jogo pulsional. Há algo no objeto – mesmo que não possamos identificar exatamente o quê – que permite que o circuito funcione.
 
Importante salientar que há sim um risco de a fantasia substituir a realidade. O transicional é uma capacidade também constituída historicamente. É possível pensar num continuum entre a fantasia e o delírio. O delírio seria a forma menos flexível da fantasia, um circuito inflexível, que situa o outro em lugares quase imutáveis. Há também fantasias neuróticas cuja inflexibilidade podem ser tão graves quanto os delírios. Uma análise parece sempre passar pelo reconhecimento de como nossas fantasias determinam o que pensamos e percebemos; como elas nos guiam e determinam o que somos e como amamos. Parece haver um ideal analítico aqui: tornar nossas fantasias um pouco mais flexíveis, um pouco mais abertas às suas origens transicionais.
 
Daí a radicalidade trágica de uma frase formulada por Freud nos idos de 1905: o encontro com o objeto é, de fato, um reencontro. Não se trata de dizer que o encontro com o objeto é uma tentativa de reencontrar o objeto perdido… isso é Aristófanes, coisa de comediante. O trágico é perceber que o encontro com o objeto é sempre uma espécie de repetição, de fazer circular a excitação-prazer (Lust) de uma forma muito específica, muito singular.
 
Para ser didático: é bastante óbvio que encontremos semelhança entre nossos parceiros amorosos e nossos pais. O complexo de Édipo quer dizer isso: amamos, necessariamente, guiados pelos circuitos instaurados pelas nossas primeiras relações amorosas. Isso quer dizer que no inconsciente encontraremos “papai” e “mamãe”? Não, pois estes são códigos pré-conscientes e conscientes que organizaram as excitações inomináveis, desligantes e desligadas que eles endereçaram juntamente com esses códigos organizadores, ligados, ligantes.
 
Portanto, a fantasia é, a um só tempo, uma excitação dilacerante e dessignificada nela mesma (objeto-fonte pulsional, excitações parciais) e uma resposta a estas excitações, isto é, a fantasia é também um roteiro consciente de prazer-apaziguamento. O poder da análise é tornar possível no encontro com o objeto-analista um reencontro com o objeto de tal forma a produzir a reabertura da situação originária, para que se torne possível perceber o modo como esse circuito de prazer se repete e procurar vias de tradução diversas àquelas que produzem muita dor e sofrimento psíquico.
 
Nude Model with Drapery, Maurice Prendergast
[Nude Model with Drapery, Maurice Prendergast]