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07/05/22

respect

 

CONTÉM SPOILER!!

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O filme “Respect” mostra-nos a história de uma das maiores cantoras de todos os tempos. Conhecer a história de Aretha Franklin é uma excelente oportunidade para refletirmos sobre o abuso sexual infantil, a violência contra a mulher negra e sobre a capacidade de reparação.

Aretha é abusada sexualmente, dentro de casa. Há dúvidas sobre o abusador. O mais provável é que tenha sido um músico amigo da família protestante. Aretha tinha 12 anos e seu abusador 24. O pai talvez não tenha abusado genitalmente da filha, mas certamente abusava moralmente – dominava, mandava, humilhava, batia.

O filme mostra a luta de uma mulher contra a violência patriarcal, contra a misoginia e o machismo. O fato de ser uma mulher negra e viver nos EUA dos anos 60 torna essa luta ainda mais aguda. Vemos no filme a notícia de Angela Davis sendo presa por terrorismo.

O que impressiona não é apenas a luta de Aretha contra o pai e o primeiro marido que também a espancava e dominava. O filme mostra a força incomensurável da voz de Aretha. Dos cantos gospel na igreja do pai aos palcos de jazz e soul, Aretha simplesmente brilhava. Manter-se ativa e engajada tanto na arte quanto na luta social contra o racismo é o que impressiona.

Na cova dos leões machos, não há deus que possa proteger uma mulher de algum dilaceramento. Mesmo no auge do poder, sendo uma das divas do soul, Aretha não se via livre das garras do racismo e do machismo.

Há também, muito bem retratado no filme, a reação de Aretha. Ora agredindo-se, por meio do consumo abusivo de álcool, ora agredindo aquelas e aqueles que lhe eram próximos. O amor – a si mesma e ao outro – era sempre um afeto tenebroso e nada confiável.

O papel da religião desempenhou, obviamente, um dos veículos para a simbolização (sublimação / inspiração) de tanta passividade. Arte e religião se articulavam nos magníficos louvores que entoava, traduzindo suas dores.

O longo processo de reparação de feridas incuráveis parece ter chegado a bom termo. A sensação que temos, ao final do filme, é de espanto: como ela pôde suportar tanta dor? Como ser capaz de continuar ofertando algo tão bonito quanto sua voz ao outro que sempre lhe destruía?

Um dos mecanismos utilizados por ela é certamente a identificação com o agressor. Tal como fizeram com ela, Aretha é agressiva com quem está perto, xinga e humilha. Mesmo assim, é importante dizer, sua violência por mais que ecoe as agressões sofridas nem de longe têm a mesma virulência.

Numa das cenas de auto-destruição, completamente embriagada, Aretha alucina a mãe – falecida quando a menina tinha 10 anos apenas – que lhe acaricia o rosto e canta para ela ao piano, como fazia antes. Talvez esses momentos de carinho e acolhimento – que também havia na igreja e com amigas e amigos – foram material suficiente para confiar no outro ainda.

O nome do filme não poderia ser mais apropriado: respeito é a base de tudo, esse olhar cuidadoso em direção ao outro. E é um achado e tanto que seu apelido “ree” seja entoado muitas vezes na música, introduzindo a força da palavra “respect”.

Recomendo o filme. Ajuda-nos a pensar sobre a força misteriosa da sublimação e mantém viva a esperança – religiosa ou não – de que os mais fracos podem sobrepujar o mal.