Os filmes “A garota ideal” (Lars and the real girl, Craig Gillespie, 2007) e “O homem ideal” (I’m your man, Maria Schrader, 2021) são excelentes reflexões sobre as relações amorosas.
No filme de Gillespie (2007), Lars é um sujeito muito introvertido e que sofre enorme pressão social para arrumar uma namorada. No entanto, até o toque de outra pessoa lhe causa dor. Ao longo do filme, temos pequenos elementos da história de Lars: ele é o filho mais novo e tem apenas um irmão mais velho. Sua mãe morreu durante seu parto. Ele foi criado apenas pelo pai que não aparece no filme, mas que parece ter ficado devastado com a morte da mulher. O irmão mais velho é casado e sua esposa está para ter um bebê.
Lars, cedendo à pressão, arruma uma namorada. Para surpresa de todos, no entanto, a namorada é uma boneca de sex shop. Ele faz uma construção delirante completa: o nome dela é Bianca, ela vem do Brasil, mas tem família dinamarquesa. Bianca perdeu os pais ainda criança e sofre de uma doença complexa que não permite que ela ande. Lars a carrega pra todo lado numa cadeira de rodas. A comunidade local acolhe Lars de uma maneira muito cuidadosa e trata Bianca realmente como uma pessoa. Lars a leva numa médica que ao tratar de Bianca, acaba por acompanhar Lars e vai tratando dele aos poucos. Na medida em que Lars vai se abrindo para o outro de verdade – em especial uma colega de trabalho que é apaixonada por ele – Bianca vai morrendo. Até que acontece de fato: Bianca tem uma piora grave e morre. É sepultada como uma pessoa normal. O filme termina dando a entender que Lars vai namorar a colega de trabalho e que seu delírio deu sentido a algo de seu trauma…
Já no filme de Schrader (2021), temos Alma, uma arqueóloga que procura a existência de poesia em línguas cuneiformes. Ela aceita participar de um experimento no qual recebe Tom, um androide super perfeito. Um homem ideal: arruma a casa, prepara o café da manhã, amante sexual sem falha, algoritmo que percebe e executa o que Alma deseja e gosta. Ao final de três semanas de experimento, Alma deve dar seu parecer à empresa. Em resumo, ela conclui que é uma experiência muito impressionante e que acaba por colocar em risco as relações humanas, tão repletas de falhas.
Gostaria de interpretar os dois filmes a partir de uma passagem de Ferenczi (1992/1934, p. 117), em suas “Reflexões sobre o trauma” diz que diante dos processos de autodilaceração provenientes do trauma, as relações de objeto tendem a se transformar em relações narcísicas. Em outras palavras: as relações com o outro são tão violentas e traumáticas que o sujeito se despedaça e estabelece relações apenas entre essas partes.
De Alma não sabemos nada de sua história pregressa. Sabemos apenas que sofreu um aborto espontâneo e que rompeu a relação amorosa que tinha por conta disso. Ela parece totalmente absorta no trabalho e avessa ao contato amoroso. Como ela mesma diz, a relação com Tom é apenas uma relação consigo mesma, sem a presença da alteridade. Uma relação amorosa sem atritos acaba por se tornar uma relação narcísica. E ainda: o outro se torna um escravo (não escravizado!), absolutamente subserviente e extensão plena das realizações de desejo do sujeito. Um robô como Tom é um ideal que neutraliza todo e qualquer tipo de “trabalho de amor”, a difícil e infinita tarefa de lidar com a diferença.
No caso de Lars, os traumas são mais evidentes. A provável culpa dilacerante, nunca dita, sempre desmentida, de ter matado a mãe durante o parto. A tristeza inconsolável do pai. O abandono do irmão mais velho que apenas diante da loucura do irmão começa a comunicar essa história afetiva. Lars precisa refugiar-se no delírio e construir sua companheira, extensão narcísica de si mesmo também. Curioso destacar que Lars não parece ter transado em nenhum momento com Bianca – ao contrário de Alma que tem uma noite de sexo espetacular com o imbrochável Tom.
Quando Freud aproxima a psicose do narcisismo, ele o faz baseado nessa percepção: o delírio fecha os canais de comunicação com o outro. O sujeito fica impermeável à comunicação razoável. Não adianta dizer ao psicótico que seu delírio não é verdadeiro. Impossível dizer a Lars que Bianca não era uma mulher real. Na cena que destaco, logo abaixo, Bianca recebe flores e Lars diz: “não são de verdade, por isso vão durar para sempre”. No fundo, claro, ele sabia que Bianca também duraria para sempre, que ela não poderia morrer, produzindo o mesmo tipo de catástrofe que a morte de sua mãe acarretou.
O filme de Schrader (2021) não está tratando da psicose, mas, no limite, ficamos nos questionando como descrever essa relação com um androide. Imaginem que isso seja possível daqui a um tempo. (O filme “Her” já tinha tratado disso de alguma forma também). Será que optaremos pelos androides ou continuaremos a labuta com a alteridade? O que isso diz também sobre nosso desejo de escravizar o outro, nossa onipotência narcísica? No limite, esse tipo de relação também não traria de volta nossas experiências psicóticas ligadas ao narcisismo primário?
Enfim, recomendo os dois filmes. Diversão garantida.