É imprescindível inventar o medo.
Porque ele vai te fazer crer na salvação.
Não há forma melhor para conter o desejo da criança:
invente medos, excite o medo.
Da criança ao eleitor, passando pelo amante e o crente:
todos buscam salvação se têm medo.
E quanto mais delirante seu medo,
mais violenta deve ser a salvação.
O bicho-papão é bravo e vai te engolir.
O homem-do-saco vai vir te buscar.
O boi-da-cara-preta vai te pegar.
Então, obedece o papai.
O papai tá armado e vai atirar e vai matar.
Vai matar o pedófilo, o bandido e o comunista.
Vai matar o gay, a trans, as mulheres desobedientes.
Vai matar a artista, a diferença.
Confia, o papai vai matar.
E se você não ficar quietinho,
você sabe,
o papai só sabe lidar com o que incomoda
de um jeito: o papai vai te matar.
.
E assim seguimos.
Quanto mais demônios inventamos,
mais distantes ficamos do mundo,
do outro, da vida como ela é:
múltipla e diferente e contingente.
Quanto mais assustados com apocalipses imaginários,
mais o mundo de verdade segue sendo devastado.
.
É imprescindível se livrar do medo.
É preciso rir do medo.
É urgente ter coragem.
A coragem mais difícil e mais complexa:
abraçar o outro, acolher o múltiplo.
Aceitar a diferença: a do outro e a que nos habita.
É vital distinguir
quem ama a morte
de quem ama amar.
[Imagem: Fears, Louise Bourgeois, 1992]