Contém spoiller!!
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Swallow, de Carlo Mirabella-Davis (2020), é um filme sobre o sofrimento das mulheres. No caso, de uma mulher branca e rica. Quer dizer, casada com um homem rico.
Hunter, a protagonista, está grávida. Uma mulher muito bonita e que é reduzida a isso: seu corpo como adorno e receptáculo dos futuros herdeiros daquela família de ricos.
Descobrimos ao longo do filme que Hunter é filha de um estupro. Ela sabe quem é seu pai e as tentativas de se aproximar dele são tão frustradas quanto aquelas que faz em direção à mãe. A mãe parece ter mantido a gravidez apenas por questões religiosas, mas nunca acolheu a filha, de fato, como fica evidente quando Hunter liga pedindo ajuda. Ser filha de um estupro irá se articular à cena final do filme, como veremos.
Hunter apresenta um estranho sintoma, a alotriofagia, isto é, o desejo de comer objetos estranhos e reconhecidamente sem valor nutricional: barro, pedra, metal. No caso dela, objetos pontiagudos, claramente perigosos e potencialmente mortíferos.
A explicação mais banal para esse sintoma é a falta nutricional pressentida pela grávida que busca nesses objetos estranhos alguma suplementação alimentar. A explicação me parece extremamente falha principalmente em se tratando de uma mulher que tinha à sua disposição toda comida que quisesse.
Clinicamente, podemos apostar que o “desejo de grávida” pode até ter um apoio biológico desse tipo, mas sempre servirá de apoio efetivo para as fantasias e os desejos inconscientes. A hipótese mais provável aqui é que vários desejos – e não apenas uma necessidade biológica – produzam a vontade de comer alguma coisa específica.
No caso de Hunter, o ritual consistia não apenas em engolir o objeto, mas recuperá-lo nas fezes e colocá-lo numa bandeja. Como um pequeno troféu por ter sobrevivido àquela prova. Como interpretar esse sintoma? A meu ver, Hunter está reencenando o trauma de sua mãe, ou seja, ela está recebendo um bebê e expelindo um bebê. Não um bebê qualquer, mas um mortífero, proveniente do estupro e da violência. Ao “engravidar” pela boca repetidas vezes, Hunter também está tomando controle da situação: sou eu mesma que causo a violência a mim e eu mesma vou me livrar dela, como minha mãe não conseguiu.
O parceiro de Hunter – e nem a família dele – ajudam-na. Ao contrário: são caricaturalmente perversos e parecem ver em Hunter apenas um receptáculo para o futuro herdeiro. Ela totalmente reduzida à sua capacidade reprodutiva. Ponto fraco do filme, mas a caricatura ajuda muito a perceber traços que de outra forma ficam muito naturalizados e quase invisíveis. De fato, em nossa cultura patriarcal e machista, a mulher é constantemente reduzida a lugares muito específicos: objeto sexual, escravizada (trabalhos domésticos, cuidado com as crianças) ou mãe (mera reprodutora).
Quando Hunter foge de casa e vai em busca do pai – o estuprador da mãe – ela ainda busca respostas para os enigmas de sua origem. O encontro entre os dois só aumenta a sensação de que Hunter deve resolver suas questões sem o apoio da família. O estuprador está tendo uma vida absolutamente normal, celebrando o aniversário de uma filha, dentro de um casamento classe média banal. Hunter deseja saber se ela tem algum traço dele, se há algo em comum entre os dois. O diálogo impressiona pelo cinismo confessional do estuprador: “não sei bem por que eu fiz aquilo… para me sentir poderoso… você não tem culpa de nada…”.
O filme termina com Hunter indo ao banheiro abortar. Felizmente, ela vivia num país no qual o direito ao aborto é legalizado. Ela toma as medicações, vai ao banheiro e realiza aquilo que sua mãe, sentimos, deveria ter feito.
É claro que pessoas religiosas como a mãe de Hunter verão o filme justamente como uma prova de que não se deve abortar, mesmo em caso de estupro. A meu ver, tal defesa serve apenas para reforçar o lugar submisso da mulher no ordenamento patriarcal. Nesse regime de poder, o corpo da mulher é uma propriedade dos homens e deve permanecer assim, sob qualquer condição. Não por acaso, a luta contra o direito individual ao aborto será encampada pela religião e a extrema direita, sempre fortemente machistas e misóginas.
Escolher se querem ou não serem mães, se querem ou não continuar uma gravidez, escolher de quem e em quais condições ficarão grávidas: são direitos básicos e que certamente não estariam em questão se os homens engravidassem. O caso de Hunter é uma história fruto dos códigos libidinais que Freud descreveu como uma tendência à “degradação do objeto”. Quanto mais objetificada, mais destituída de subjetividade, autonomia e poder, mais a mulher cumpre o papel designado a ela pela sociedade patriarcal.
É claro que esse regime de poder terá seus efeitos nefastos sobre os homens – da impotência à aversão à intimidade, passando pela violência misógina e homofóbica. Aliás, deve ser por isso que o diretor escolhe um enfermeiro homem para cuidar de / vigiar Hunter. Um enfermeiro estrangeiro que diz que está fugindo da guerra. Apesar de ter dito que Hunter sofre porque não conhece o horror da guerra, é ele quem a ajuda a escapar da família do marido antes de ser levada para o hospital psiquiátrico. Talvez o enfermeiro tenha percebido que mulheres numa sociedade patriarcal vivem efetivamente a experiência da guerra permanente, a experiência de serem destruídas e objetificadas constantemente.
A mensagem final do filme pode parecer libertadora, mas é uma advertência assustadora. Se mulheres brancas e ricas como Hunter sofrem dessa maneira, num país com índices democráticos altos, imaginemos o que mulheres negras, indígenas e pobres sofrem na periferia do capitalismo, dominada pelo fundamentalismo religioso e o machismo feminicida… Todos esses escassos direitos conquistados pelas mulheres estão sempre, sempre sob ataque. É o que vemos, aliás, no banimento do direito ao aborto nos EUA sendo colocado em pauta pela Suprema Corte em pleno 2022. Pensando na situação atual do Brasil, com Damares senadora e Michelle Bolsonaro como uma referência de mulher poderosa, a desesperança é devastadora. Por muito, muito tempo ainda – e sabe-se lá quais políticas poderão mudar isso – as mulheres continuarão a serem “servas de deus” e homens de 60 anos como Bolsonaro poderão dizer tranquilamente e sem punição alguma que “sentiram um clima” ao ver venezuelanas “arrumadinhas” de 12, 14 anos se prostituindo.
O direito ao aborto é apenas uma das pontas do iceberg da dominação masculina. Como vemos, as mulheres devem engolir muita coisa podre e mortífera para provar que podem continuar vivas.